Portugal enfrenta atualmente cenários complexos em diferentes áreas da sociedade (como saúde, educação ou a justiça) o que, conjugado com a fragilidade institucional, a instabilidade governamental e a generalização da incompetência e corrupção, nos coloca ao nível da “república das bananas”.

O contexto particular da saúde, exacerbado pela escassez de recursos humanos na área médica, tornou-se uma questão crítica que desafia o Sistema Nacional de Saúde (SNS). A necessidade de serviços médicos, especialmente em áreas rurais e menos desenvolvidas, coloca uma pressão significativa sobre os médicos portugueses, onde muitos dos quais têm migrado para outros países em busca de melhores condições de trabalho.

Para enfrentar essa falta de recursos humanos é essencial que o Governo português avalie cuidadosamente as alternativas e soluções para suprir a carência de recursos humanos na saúde. Onde se deve naturalmente incluir a contratação de médicos estrangeiros, mas de forma ética e transparente, e também definir maiores investimentos em formação e retenção de médicos locais, com melhoria das condições de trabalho.

O acordo entre Portugal e Cuba para a contratação de médicos levanta questões éticas mas também de ingerência governamental. Os médicos são remunerados por apenas uma parcela residual do valor que é pago por Portugal a Cuba, por outras palavras, Portugal paga a Cuba e apenas uma parte desse valor chega aos profissionais que estão a trabalhar em território nacional. Se a esta variável adicionarmos a limitação às liberdades que lhes é imposta, estamos claramente perante um caso de “tráfico humano” dos tempos modernos.

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Mas se no lado ético e moral este processo já nos deixa apreensivos podemos somar ainda a ingerência ou incompetência.

O Governo contactou as duas entidades que têm que se pronunciar sobre o reconhecimento do diploma, a CEMP (Conselho de Escolas Médicas Portuguesas) e a Ordem dos Médicos. Na sequência deste pedido, pela reação dos representantes destas entidades e pelas palavras do próprio ministro da Saúde, percebemos que temos um novo momento PS. Com a justificação de que o objetivo é “agilizar procedimentos” no reconhecimento dos “futuros médicos” pela Ordem, ficou claro que este é também um procedimento de facilitismo e favorecimento, sem a devida validação de competências da habilitação destes médicos para exercer em Portugal, uma total injustiça face às centenas de médicos que estão já hoje em solo português a aguardar essa mesma validação.

Para contextualizar melhor esta ingerência ou atitude de poder absoluto é crucial compreender o processo de habilitação dos médicos em Portugal.

Quem quer exercer medicina em Portugal tem de cumprir dois requisitos para se inscrever na Ordem dos Médicos: ver reconhecido o seu curso por qualquer uma das oito escolas médicas portuguesas e demonstrar que sabe comunicar em português.

O primeiro requisito começa então no reconhecimento das competências que pode ser feito de duas formas:

  • Um médico da União Europeia tem reconhecimento automático em Portugal, ao abrigo da legislação comunitária. Para se inscrever na Ordem dos Médicos só terá de realizar uma prova de comunicação médica.
  • Médicos de outras geografias necessitam de uma avaliação de conhecimentos académicos e clínicos, assegurados pelas escolas médicas portuguesas e, depois, pela Ordem dos Médicos.

À exceção dos candidatos oriundos de países onde o português é a língua oficial, todos começam por realizar uma prova de comunicação inicial nas próprias escolas médicas.

Se o candidato for estrangeiro e de fora da UE tem então que se submeter à Prova de Acesso Médico que contempla três passos:

  1. Uma avaliação curricular, que consiste num teste escrito nas grandes áreas de conhecimento médico, da responsabilidade das Escolas Médicas e onde metade dos candidatos fica pelo caminho;
  2. Uma prova prática com o doente, chamada ‘prova de caras’, para os candidatos que passaram a primeira fase;
  3. Finalmente, os candidatos têm de apresentar uma dissertação de mestrado, exigida também aos estudantes portugueses que saem dos cursos de Medicina com grau de mestre.

Os dados só começaram a ser centralizados e organizados em 2019, mas à data de Janeiro de 2022, dos mais de 1600 pedidos submetidos para admissão de estrangeiros apenas 700 tinham sido aceites.

Todo o processo de qualificação foi feito pelas escolas médicas para assegurar que os candidatos aprovados têm conhecimento reconhecido para exercerem medicina com o mesmo padrão de exigência imposto aos estudantes nacionais.

O segundo requisito acontece após a conclusão do processo das Escolas Médicas com aprovação, que demora cerca de um ano, onde os candidatos devem submeter-se a uma prova de comunicação médica, exigida pela Ordem dos Médicos e realizada no Instituto Camões tutelado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.

O ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, dizia há uns dias numa entrevista que: “Se não souber falar português, não pode exercer. É preciso falar com os doentes e escrever nos diários clínicos.”

Concluído com sucesso todos os requisitos é possível proceder à inscrição na Ordem dos Médicos, o que apenas concede a possibilidade imediata de praticar clínica geral. Para equivalências às especialidades, essa avaliação cabe exclusivamente aos colégios da Ordem e é um campeonato completamente diferente.

Feita a contextualização do procedimento de habilitação de médicos percebemos que o governo e o ministro da Saúde, além de aderirem a mecanismos de contratação que promovem o tráfico humano, também contornam todo o processo de validação de competências e capacidades médicas implementado pelas entidades competente. E ainda ignoram e desrespeitam centenas de médicos que imigraram para Portugal, que cumpriram as regras e que aguardam o processo de certificação.

Sendo o ministro da Saúde médico de profissão, não deveria ter conhecimento do processo de qualificação? Se tem conhecimento porque está a propor que não seja cumprido?  Se o reconhecimento de especialidades é ainda mais complexo do que o de medicina geral como pode o governo ambicionar importar 300 médicos diretamente para as especialidades? E os médicos residentes em Portugal que aguardam oportunidades para evoluir para as suas especialidades?

Dir-lhe-ia para aguardarmos por próximos episódios, mas tendo em conta a gestão em forma de “poder absoluto” que este governo tem feito, podemos afirmar com elevada convicção que este pode ser mais um processo digno da República das Bananas.