Portugal já teve governantes com piores características que Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. O que nunca teve foi esta conjugação em simultâneo de os dois máximos responsáveis do país partilharem uma tal fobia à responsabilidade. Marcelo, um egocêntrico fútil, tornou-se refém da sua própria popularidade. Costa, um tacticista que enquanto governante acabou aprisionado pela sua habilidade na gestão política. É o reflexo grotesco da conjugação entre estes dois homens que encontramos quando nos confrontamos com a sequência quase ritual cumprida por eles após cada momento em que pressentem que podem ser postos em causa.

Primeiro, o PR apressa-se de imediato a menorizar o acontecido e a afastar cenários de eventuais responsabilizações: “O que se fez foi o máximo que se podia fazer” (Marcelo a propósito dos incêndios em Pedrogão Grande, 2017), “é um ponto crítico específico” (Marcelo acerca do fecho das urgências hospitalares, em 2022). De seguida, o primeiro-ministro anuncia a mudança-milagre que vai resolver tudo e invariavelmente transfere as culpas para o passado e a solução para o futuro: “Este é o momento para fazermos a reforma há muito adiada da floresta” (António Costa, após os incêndios de Pedrogão Grande), primeiro-ministro promete “uma resposta estrutural para os desafios do SNS” (António Costa, agora em Junho de 2022, em plena crise das urgências hospitalares).

Entretanto, o ministro na berlinda passa de uma conferência de imprensa para outra com o ar de quem se sente vítima de uma injustiça. Agora é Marta Temido, funesta sucessora da ministra Constança dos incêndios de 2017, que anuncia planos de contingência aos pares, esperando certamente que ninguém se lembre que já em 2019 anunciara outros planos para outras urgências.

Pelo meio temos a inevitável foto esperpêntica de Marcelo e as não menos inevitáveis declarações arruaceiro-desafiantes de Costa. Tudo para jornalista ver.

Por fim, as atenções e as culpas serão fulanizadas. Criam-se bodes expiatórios, como aconteceu com os eucaliptos nos incêndios de 2017. Quanto a 2022, não é difícil antever que dentro de algum tempo a culpa será da Ordem dos Médicos porque estabelece critérios muito exigentes para o funcionamento das urgências. Ou das empresas de tarefeiros que, como enfatiza o BE, dão lucro aos privados (ironicamente a cegueira ideológica do governo de António Costa ao acabar com as PPP nos hospitais de Braga, Amadora e Odivelas acentuou o descalabro nos hospitais públicos, tornando-os ainda mais dependentes destas empresas privadas).

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Os dois anos de pandemia adiaram o momento em que Marcelo e Costa chocariam com a realidade. Durante dois anos Marcelo e Costa foram poupados à responsabilização pelo estado de excepção que a pandemia trouxe às nossas vidas. Tudo era adiável. Os portugueses confinaram e a vida real também. Protelar tornou-se uma forma de fazer política com sucesso. Em Portugal, evidentemente.

Quando finalmente nos libertámos dos estados de emergência, catástrofe e demais excepções, não tanto porque o vírus tenha desaparecido mas simplesmente porque se tornou evidente que íamos viver com ele, começaram a cair dados que dão conta dessa degradação das nossas vidas: em 2020, a taxa de mortalidade materna atingiu os 20,1 óbitos por 110 mil nascimentos devido a complicações da gravidez, parto ou puerpério. É o nível de mortalidade materna mais elevado em 38 anos. O peso dos impostos nos salários sobe para 41,8% em Portugal, apesar de ter descido na média da OCDE.  Os alunos portugueses foram dos que mais tempo estiveram sem aulas durante a pandemia e dos que menos se sabe ou procura saber sobre a recuperação desse tempo perdido. (Não por acaso, no ano lectivo de 2020-21 o ensino público perdeu quase 31 mil alunos, enquanto o privado viu aumentar em 6 mil o número de matriculados.)

A enumeração podia prosseguir. Mas passemos à pergunta que se impõe: o que é de diferente agora? Algo tão velho quanto a vida, ou seja, o carácter inadiável dos partos. Os partos que não se podem agendar para daí a um mês, ou três ou quatro, tornaram óbvio o que a anomia instalada e a propaganda constante têm iludido: o populismo de Marcelo e o estatismo autocrático de Costa colocaram o estado social à beira da ruptura.