A chegada de Charles de Gaulle à presidência da França em 1958 foi recebida com um misto de surpresa e de apreensão. Eisenhower, que lidou com a sua personalidade difícil na Segunda Guerra Mundial, sabia-o capaz das mais surpreendentes e inesperadas decisões. Num memorando datado de 17 de Setembro desse ano, e que de Gaulle dirigiu ao presidente norte-americano e ao primeiro-ministro britânico, Harold Macmillan, o presidente francês referiu, entre outros aspectos, que os três Estados partilhavam interesses estratégicos que iam além da área geográfica abarcada pela NATO. Foi nessa linha de raciocínio que sugeriu o reforço da aliança atlântica através de uma organização entre os três. Dois dias antes, de Gaulle tinha recebido Adenauer na sua casa em Colombey onde lhe transmitiu a importância que atribuía ao estreitamento de relações entre a França e a Alemanha para contrabalançar o peso anglo-saxónico na Europa.

Esta duplicidade do presidente francês não era apenas consequência do conhecimento que tinha da complexidade da história, mas uma particulariedade da sua forma de estar e ainda um fruto da visão que tinha da França. Tal como a sua vizinha a leste, a França era um país europeu, imerso nos problemas europeus, que invadira e fora invadida pela Rússia mas, e ao contrário da Alemanha, com colónias e uma presença física em todos os continentes. Contrariamente à Alemanha, a França era universal.

Entretanto passaram-se anos e as figuras referidas no parágrafo em cima tornaram-se personagens históricas, mas a geografia não se alterou. E a França, ao contrário da Alemanha, continua a ser um estado universal, a par com os EUA e o Reino Unido. É neste sentido que deve ser entendida a viagem de Emmanuel Macron à China e as suas palavras em Pequim, seguidas, dias depois, da sua ida à Holanda e do discurso, em inglês, que proferiu em Haia. Macron não é de Gaulle, mas o certo é que a geografia não mudou e, por muito que não seja de facto de Gaulle, limita-se a afirmar os interesses de Paris.

Em 2003, um militar norte-americano chamado Ralph Peters, com vasta obra publicada em revistas e livros sobre estratégia, escreveu um interessante ensaio sobre o papel do Atlântico na segurança global do século XXI. O texto é longo e tive oportunidade de escrever sobre ele na edição de Janeiro de 2007 da desaparecida revista ‘Atlântico’, mas resume-se, muito simplesmente, à ideia da expansão da globalização para Estados como a China exigir um alargamento da NATO para sul. A Organização do Tratado do Atlântico Norte é precisamente isso, do norte do oceano, mas a partir do momento em que vai até ao Báltico, esse deixaria de ser um critério para excluir o alargamento para sul. Essa possibilidade permitiria duas coisas: primeiro, uma garantia de segurança de todo o Atlântico e, segundo, a presença de países como o Brasil na esfera ocidental contra os regimes oligárquicos que, por via da globalização, tenderiam a exercer um poder de atracção maior que o das democracias liberais. Para Ralph Peters, um Estado essencial para este alargamento seria Portugal, em virtude da sua história e até pela vantagem da língua portuguesa. No seu entender, Washington deveria conversar com Lisboa para, juntos, encetarem esforços, que seriam com certeza demorados, com vista a não deixar o Brasil fugir do eixo das democracias ocidentais e cair no colo da Rússia e da China.

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Como é do conhecimento público estes passos não foram dados. Mesmo que o alargamento da NATO se mostrasse impossível, seria com certeza realizável algum tipo de cooperação ao nível do patrulhamento dos mares ou na ajuda a Cabo Verde para o combate ao tráfico de armas, drogas, mercadorias e à imigração clandestina. À semelhança da França, Portugal tem ligações históricas em todos os continentes. Não são muitos os Estados europeus a poderem dizer o mesmo. Mas, e ao contrário da França, a nossa estratégia que se centra na relação com os EUA (porque nos garantem a defesa) na UE (porque nos garante os fundos) e com o Brasil e os países africanos de línga portuguesa (porque nos garantem uma consciência limpa), não é mais que um automatismo do que já existe e com pouca ideia do que fazer com isso.

O presidente do Brasil está em Portugal. A visita ficou manchada porque as autoridades portuguesas quiseram convidá-lo para as comemorações do 25 de Abril, o que é naturalmente inadmissível pois Brasília não condena a Rússia por ter invadido a Ucrânia. Pior: equipara o comportamento da Rússia ao da Ucrânia e seus aliados, Portugal incluído. O objectivo do governo era o de provocar barulho e irritar uma ala à direita para desviar as atenções dos assuntos internos. Foi um erro de palmatória que podia ter sido evitado, pois o problema de fundo é que o apoio brasileiro já era dado por Bolsonaro. Ou seja, a posição do Brasil, o seu afastamento dos EUA e da Europa, não é um capricho de Lula, mas um alinhamento do Brasil que se desenha há anos. Um grande Estado como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, recursos naturais imensos, não pode ser negligenciado da maneira que tem sido. A dependência que o Brasil tem da China e da Rússia não é de agora e, como a indignação vazia do grito de pouco ou nada serve, é melhor que Portugal (a par com os EUA) façam algo para que esta realidade se altere.

Konrad Adenauer ficou chocado por de Gaulle ter sido capaz, dois dias após o seu encontro a dois, de apresentar por escrito a britânicos e norte-americanos uma proposta que afastava a Alemanha da segurança global. De Gaulle fê-lo em nome da complexidade derivada da presença da França em todo o lado. No seu entender não havia qualquer contradição entre essa carta e a sua conversa amigável com o chanceler alemão, pois a sua posição para a defesa da Europa não chocava com o esforço francês por um equilíbrio global, por muito que assim parecesse a um Estado apenas radicado no espaço europeu. Transpondo este tipo de comportamento para actualidade ninguém duvida que a França esteja do lado da Ucrânia no conflito com a Rússia. Da mesma forma, a maior ajuda que Portugal poderia dar a Kiev não são armas nem munições, mas um alargamento da comunidade internacional que não apoia nem aceita soluções como as que Putin decidiu levar por diante em Fevereiro do ano passado. Sucede que, para isso, o governo português teria de ter pensamento estratégico, uma concepção do que fazer com a herança portuguesa e não se guiar pelos meandros medíocres da política interna onde o PS costuma ser tão bem-sucedido.