É sabido que o Cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa, foi amigo pessoal do Dr. António de Oliveira Salazar, quando ambos eram professores da Universidade de Coimbra. Embora leccionando em faculdades diferentes – Cerejeira em Letras e Salazar em Direito – entre ambos estabeleceu-se, cimentada não só pela inegável valia intelectual de ambos, mas também pela sua comum fé católica, uma certa amizade que, com o passar dos anos, esmoreceu. Partilhavam também um vivo interesse pela realidade política nacional, ainda no rescaldo de uma primeira república que, não obstante o discurso libertário, de facto restringiu a liberdade de voto, a liberdade de pensamento e de expressão e, mediante uma impiedosa perseguição à Igreja católica, praticamente aboliu a liberdade religiosa.

Sidónio Pais tinha proporcionado ao país alguma moderação, nomeadamente pelo restabelecimento das relações diplomáticas com a Santa Sé, mas o governo do presidente-rei foi sol de pouca dura: um ano depois de ter tomado posse, foi assassinado na estação do Rossio, há precisamente cem anos, supõe-se que por alguém descontente com a sua aproximação à Igreja católica. Recorde-se que a primeira república foi essencialmente anticristã.

Entretanto, na Europa começavam a surgir os regimes totalitários, como o fascismo italiano e o nazismo alemão. A matriz profundamente anticlerical das forças de esquerda, nomeadamente os comunistas, socialistas e anarquistas, levou alguns católicos menos esclarecidos a depositar as suas esperanças nestes movimentos, não obstante a sua ideologia anticristã. O fascismo de Benito Mussolini, embora anticatólico, logrou pôr termo ao contencioso que opunha a Igreja ao Estado italiano, desde que este, nos finais do século XIX, ocupou os chamados Estados pontifícios, privando o Santo Padre das suas imemoriais possessões territoriais na península itálica. Graças aos pactos de Latrão, foi reconhecida formalmente a soberania do romano pontífice sobre o Estado Cidade do Vaticano, e a Igreja recebeu uma razoável indemnização, pelos bens patrimoniais de que tinha sido espoliada.

A emergência do nacional-socialismo alemão também foi saudada com algum entusiasmo pela direita conservadora, não obstante o seu evidente paganismo. Alguns cristãos, sobretudo protestantes, pensaram que Adolf Hitler poderia ser o instrumento da providência para vencer o comunismo, que ameaçava a cristandade. Assim se explica o fervor inicial de uns quantos fiéis alemães pelo nacional-socialismo, bem como a atitude colaborante de alguns bispos católicos, como o arcebispo de Viena que, contrariando a Santa Sé, saudou em público a anexação da sua pátria pelo terceiro Reich alemão.

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Neste contexto, teria sido compreensível que o Cardeal Cerejeira, também pela sua amizade com Salazar – o qual tinha, então, no seu gabinete de presidente do conselho de ministros, uma grande fotografia de ‘il Duce’ – nutrisse alguma simpatia pelo fascismo e, até, pelo nacional-socialismo alemão, tido por muitos como a única força política capaz de vencer o bolchevismo ateu soviético. Contudo, o então Cardeal-Patriarca de Lisboa não se deixou seduzir pelo canto da sereia fascista, nem nazi, em perfeita sintonia com o magistério do Papa Pio XI – autor da encíclica Mit brennender Sorge, que condena o nacional-socialismo germânico – e de seu sucessor, Pio XII, que por ter sido núncio em Berlim, não tinha quaisquer dúvidas quanto à perversidade intrínseca da ideologia nacional-socialista.

O barão Oswald von Hoyningen-Huene (1884-1963), foi o representante diplomático da Alemanha nazi em Portugal, de 1934 a 1944, e “fazia parte da aristocracia alemã que não se identificava com Adolf Hitler, mas que o tolerava em nome da pátria”, como escreveu Margarida Magalhães Ramalho, num interessante artigo sobre “O barão do Reich”, publicado n’ A Revista do Expresso, a 5 de Agosto de 2017.

Em 1937, quando ainda não tinha começado a II Guerra Mundial, nem se conheciam as atrocidades cometidas nos campos de concentração nazis, o Cardeal-Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, aproveitou a tradicional alocução radiofónica natalícia para denunciar, de forma contundente, a ideologia nacional-socialista. Fê-lo de tal forma “que mereceu, do barão, uma extensa carta de protesto de sete páginas. Tanto quanto se percebe, o prelado ter-se-ia referido diversas vezes (…) ao ateísmo germânico, condenando a política de eugenia promovida pela nova ordem e referindo-se a Hitler como um ‘César pagão’”.

O embaixador germânico, sem esconder o seu desagrado e indignação, perguntava ao Patriarca: “O objectivo do seu discurso de Natal era atacar a Alemanha? O meu país foi aí mencionado 5 vezes e há mais 4 alusões indirectas. Várias vezes V.ª Eminência o colocou no mesmo pé de igualdade que o Comunismo, ou com o ateísmo marxista. (…) Com a leitura do seu discurso, dir-se-ia que a Alemanha é o país mais pagão do mundo, um país que só conhece o culto da raça e da força, que se entrega a um Moloch (deus dos amonitas e considerado um demónio para os cristãos) novo e desconhecido, que destrói a liberdade do homem e que diviniza um César humano (…)”.

Note-se que o diplomata alemão não era nazi, nem partidário de Hitler, o que motivará a sua destituição, “por falta de confiança política”, em 1944. Depois de demitido das suas funções diplomáticas, o embaixador regressa ao Estoril, onde ficara a sua mulher, e aí fixa a sua residência. Contudo o Cardeal Cerejeira, mesmo sabendo que o barão von Hoyningen-Huene não era nazi e amigo de Portugal, foi implacável na sua condenação pública, sem eufemismos, do nacional-socialismo.

O protesto formal do embaixador alemão, em Lisboa, “só mereceu de Cerejeira uma resposta lacónica, quase um ano depois. Nesta, o cardeal reafirmava que existiam princípios que para ele eram condenáveis à luz da fé católica, pelo que não podia prometer não voltar a falar neles …”. Ou seja, o Cardeal-Patriarca não só não apresentou quaisquer desculpas, como não retirou o que dissera e até ameaçou voltar a denunciar o carácter violentamente anticristão do nacional-socialismo de Adolf Hitler.

Quando, algum dia, se escrever a história do século XX em Portugal, será necessário que, em vez de repetir o falso tópico marxista que cola a Igreja ao Estado Novo, por virtude da antiga amizade entre Salazar e Cerejeira, se faça a justiça de dizer a verdade. Ou seja, que a Igreja Católica sempre manteve a sua independência em relação ao regime autoritário que então vigorava em Portugal e que o seu principal prelado, o Cardeal-Patriarca de Lisboa, já então denunciava, publicamente, em total sintonia com o magistério pontifício, nomeadamente os ensinamentos dos Papas Pio XI e Pio XII, a absoluta incompatibilidade entre a fé cristã e a ideologia nacional-socialista.

Já agora, diga-se também que isto aconteceu muito antes de a Rússia comunista assinar, a 23 de Agosto de 1939, um infame tratado com a Alemanha nazi, o pacto Molotov – von Ribbentrop, em ordem à comum invasão, aniquilação e partilha da Polónia católica.