Nos últimos anos, as pessoas que querem “descolonizar” a cultura ocidental e o ensino da História, têm gasto rios de tinta a escrever contra figuras proeminentes do nosso passado, figuras que de uma forma ou de outra têm simbolizado os Descobrimentos, a expansão portuguesa no Mundo e o Império que essa expansão trouxe consigo. Em conformidade, o Infante D. Henrique é por essas pessoas apresentado e execrado como o primeiro dos negreiros; Gomes Eanes de Zurara como um dos primeiros racistas; Afonso de Albuquerque como um governador e chefe militar de enormes brutalidade e crueldade; o padre António Vieira como um apologista da escravatura; etc.

Os que apontam erros e violências a estas e a outras figuras que a memória histórica dos portugueses se habituou a honrar e celebrar, não querem apenas demoli-las, querem, também, colocar outras figuras no seu lugar. Por isso, ao mesmo tempo que atacam esses supostamente perversos ou brutais portugueses, os activistas woke tecem loas a líderes de escravos rebeldes e àquelas figuras africanas que ofereceram resistência à expansão portuguesa. Dessas, e em primeiro lugar, sobressai a figura de Njinga a Mbamde, que foi rainha do Ndongo e de Matamba (parte da actual Angola) no século XVII. O seu enaltecimento é muito frequente e disseminado e até Guterres, num discurso proferido em 2019 no contexto do Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, veio evocá-la lado a lado com Harriet Tubman, a abolicionista negra norte-americana, e como alguém que, para lutar contra a escravatura, se opôs aos portugueses de armas na mão. Houve mesmo quem, no nosso país, tenha proposto que se erigisse uma estátua a Njinga na cidade de Lisboa.

Subentende-se, portanto, que essa rainha angolana esteja isenta de todas as maldades e crueldades que se verberam às figuras históricas ocidentais e que tanto escandalizam a população woke lusófona e anglo-saxónica. Mas será mesmo assim? Foi essa pergunta que o cidadão X começou a fazer a si próprio. Este cidadão de que vos falo é um jovem escrupuloso e inteligente, que, sendo uma espécie de Lutero woke cheio de inquietações de alma e tendo dúvidas acerca da verborreia politicamente correcta com que os seus compagnons de route lhe enchem os ouvidos, quis tirar tudo a limpo. Desejando saber mais sobre o período histórico em que Njinga viveu, sobre a sua acção e sobre a marca que deixou na história do seu povo e da humanidade, decidiu procurar informação específica e confiável. Como domina mal a língua inglesa e desconfia dos brancos, escolheu uma obra escrita por Linda M. Heywood, uma historiadora negra que lhe disseram — e com razão — ser pessoa sabedora e competente, e cujo livro de 2017 sobre a rainha africana e a conquista portuguesa da região de Angola onde ela viveu está traduzido em português e acessível a qualquer pessoa, como pode ver-se aqui.

Ao fim de vinte ou trinta páginas desse livro o nosso cidadão X começou a surpreender-se e a inquietar-se. Verificou que a escravatura e o comércio de escravos para utilização interna existiam de forma disseminada entre o povo de Njinga, que a posse e venda de escravos em mercados provinciais e centrais eram elementos cruciais da economia do Ndongo e que logo nos primeiros contactos com os portugueses os chefes locais os ofereceram como moeda de troca. Adiante, constatou que, durante o seu reinado, Njinga esteve profundamente envolvida na venda de escravos não apenas aos portugueses, mas também aos holandeses que ocuparam a zona de Luanda entre 1641 e 1648, e percebeu que a rainha aceitava perfeitamente o tráfico transatlântico de escravos desde que o negócio passasse por ela. Percebeu, também, que entre os africanos certos escravos eram marcados fisicamente, uma brutalidade que ele supunha ser uma prática  exclusiva dos europeus.

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Sendo pessoa sensível, frontalmente avessa a injustiças e crueldades, o cidadão X ficou profundamente incomodado ao dar-se conta de que os reis do Ndongo tinham a autoridade de mandar sacrificar pessoas e que Njinga o fez assiduamente e, por vezes, com grande crueldade. Eleita rainha, tratou, por exemplo, de eliminar quem pudesse vir a contestar-lhe o poder e um dos muitos assassinados foi um sobrinho de sete anos que matou e atirou ao rio Cuanza. Durante a sua vida a rainha manteve muitos amantes masculinos. Quando, certo dia, um conselheiro lhe fez notar que esse comportamento desrespeitava a memória de seu pai, Njinga mandou matar o filho desse conselheiro à frente dele e, depois, mandou executá-lo, também.

A meio do livro o nosso cada vez mais surpreendido e desapontado leitor constatou que Njinga se ligou a imbangalas — bandos particularmente violentos e que praticavam rotineiramente o canibalismo — e que, quando casou com um deles, adoptou as práticas rituais desses grupos. Foi para cumprir uma dessas práticas e para se tornar líder imbangala, que esmagou um bebé de uma das suas servas num almofariz e espalhou a massa ensanguentada que daí resultara no seu próprio corpo.

Apesar do horror que estes factos despertavam em si, aquilo que mais abalou as convicções do cidadão X foi um episódio passado em 1622 quando Njinga ainda não era rainha e chefiou uma comitiva diplomática do Ndongo a Luanda, para negociações com o governador português João Correia de Sousa. Na audiência com esse governador, constatando que não havia cadeira onde se sentar, apenas um veludo posto sobre um tapete, no chão, Njinga ordenou a uma das mulheres do seu séquito que se pusesse de gatas para que pudesse sentar-se nas suas costas. Finda a reunião, que durou várias horas, e quando o governador, que a acompanhava à porta lhe fez notar que a mulher que a suportara ainda estava de gatas, Njinga replicou que a deixava ali propositadamente pois tinha muitas outras como aquela e uma pessoa com o seu estatuto não se sentava duas vezes na mesma cadeira.

Indignadíssimo com esse episódio, o cidadão X confessou a um grupo de wokes mais velhos que ficara a saber que Njinga tinha muitos escravos e que os tratava mal. Um deles disse-lhe que se queria ser útil à causa seria melhor esquecer essa parte da história porque, se não o fizesse, iria dar força à direita saudosista e lusotropicalista; um outro falou-lhe em “complexidades” e “contradições” próprias das culturas africanas; e um terceiro fez-lhe notar que naquele episódio do tapete não se tratava de uma escrava, mas de uma criada ou serva, o que ainda indignou mais o nosso cidadão X:

— Era uma pessoa livre? Pior, então — declarou. — Muitos camaradas nossos dizem que, em África, a escravidão era diferente da que existia nas Américas. Fiquei, agora, a saber que a liberdade e os direitos das pessoas também eram diferentes, e para muito pior.

Desapontadíssimo com tudo o que lera e com o tanto que andara enganado, o nosso jovem woke enviou nesse mesmo dia um email a Guterres pedindo-lhe que deixasse de fazer tristes figuras a falar do que não sabia, e avisando-o de que Njinga não era nenhuma anti-escravista, bem pelo contrário. Ultimamente começou a germinar na sua cabeça a intenção de escrever um artigo, sob pseudónimo, a criticar as crueldades da rainha angolana. Espero que não o faça e que, passada esta fase de perplexidade e decepção, consiga elaborar o conhecimento e aceitar que a muito inteligente, politicamente hábil e corajosa Njinga a Mbamde — uma mulher que, no fim da sua vida, se tornou verdadeiramente cristã e que procurou adoçar os seus comportamentos e os do seu povo — era, também, uma bárbara rodeada de gente bárbara e hostil, pois os portugueses e africanos que se lhe opunham estavam longe de ser figuras angélicas ou meninos de coro.

Estou certo de que ao colocar as coisas assim, em perspectiva, no seu contexto, relativizando-as, o cidadão X acabará por entender que as acções e decisões de Njinga — sim, praticou actos de grande crueldade; sim, esteve envolvida na venda de escravos para o tráfico transatlântico — não podem ser julgadas pela tabela dos nossos conceitos e valores actuais e têm de ser compreendidas nas circunstâncias do seu tempo histórico e do universo cultural em que viveu. E pode ser que, uma vez entendido tudo isso, o cidadão X, que, apesar de ingénuo, é um homem inteligente e estruturalmente honesto, conclua que o que é válido para aquela rainha é igualmente válido para todos os personagens históricos, incluindo os portugueses. Se e quando chegar aí, aceitará sem estados de alma que Njinga seja, merecida e compreensivelmente, uma heroína nacional de Angola, e que o Infante D. Henrique, Vasco da Gama ou Afonso de Albuquerque sejam, de forma igualmente compreensível e justa, heróis nacionais portugueses. No dia em que tiver assumido que nenhum deles é irrepreensível, mas que todos têm de ser compreendidos em função do que eram as práticas dos seus povos e das épocas em que viveram, o cidadão X terá amadurecido e terá deixado com toda a certeza de ser woke.