Quanto custam as medidas adoptadas para mitigar os efeitos da pandemia? Não sabemos. O único partido que se preocupou em perguntar foi o Bloco de Esquerda pela voz da deputada Mariana Mortágua, no debate na generalidade do Orçamento suplementar. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) alerta no mesmo sentido. O novo ministro das Finanças João Leão respondeu genericamente que eram difíceis de calcular. À UTAO nem se deu ao trabalho de responder.

Podemos ter todas as instituições. Mas enquanto formos governados numa lógica de quem governa manda, como se o Estado Novo não tivesse saído de dentro de quem nos governa, nada nos valem as instituições. Como é que não é possível elaborar um quadro em que se apresentem os efeitos orçamentais das medidas discricionárias e o impacto na despesa e na receita da queda da actividade económica? Todos os países conseguem fazê-lo, o próprio Governo, quando quer promover as suas medidas, fá-lo – como acontece no Orçamento inicial de 2020 (ver página 61).

Temos o Conselho de Finanças Públicas, temos a UTAO e temos o gabinete de estudos do Banco de Portugal. Todos podiam contribuir para percebermos melhor o Orçamento do Estado e como é que o Governo está a gerir os recursos escassos para enfrentar, neste caso, a pandemia e apoiar a sobrevivência e recuperação da economia. Uns não conseguem avaliar devidamente as políticas por falta de informação, como a UTAO, outros não o podem fazer, como o Banco de Portugal. E assim se restringe o escrutínio do Governo, que até à Assembleia da República se dá ao luxo de não responder.

Já tínhamos um crescente problema de escrutínio, deste e do anterior governo, por causa da cumplicidade que a solução de apoio à esquerda gerou. Eram do BE e do PCP que vinham, regra geral, no passado, os principais alertas para os abusos dos governos e, no caso concreto dos orçamentos do Estado, os avisos para os truques ou para a falta de transparência. Com a entrada indirecta destes partidos na lógica do poder, perderam-se mecanismos de escrutínio dos governos, especialmente liderados pelo PS como agora acontece. Os partidos à direita do PS não têm revelado a mesma capacidade de escrutínio que tinham o PCP e o BE. O que deixa o regime especialmente frágil e exposto a abusos de poder.

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O medo que se instalou na sociedade, com a pandemia, aliado à popularidade que o primeiro-ministro atingiu com a gestão eficaz que fez desta crise sanitária são factores adicionais de risco de abuso de poder. Não estão em causa, obviamente, os protagonistas do poder, já que ninguém duvida da sua cultura democrática. Mas a tentação do poder é enorme e é exactamente por isso que o sistema é construído numa lógica de pesos e contrapesos. Além disso, uma longa ditadura, como aquela que vivemos na nossa história recente, não pode deixar de deixar resíduos culturais no exercício do poder.

Aliás, a forma como o Governo reage às criticas é exemplificativa dessa tentação para o autoritarismo. A reacção às criticas segue frequentemente a lógica do “quem não é por mim é contra mim”. Evitam-se as perguntas difíceis e rapidamente se acusa quem questiona e tenta escrutinar de ter outros interesses ou de estar contra o interesse nacional.

É do interesse de todos perceber quanto se vai gastar afinal em medidas para garantir a sobrevivência da actividade económica até haver dinheiro europeu para se avançar com um plano de recuperação. Resta-nos a abordagem indirecta, agarrando em declarações e frases espalhadas pelos mais diversos documentos. E por via deles concluímos que a maioria do défice público é explicada pelo efeito de aumento da despesa e redução da receita provocada pela recessão. Na melhor das hipóteses, as medidas do Governo custarão 4 mil milhões de euros, ou 2% do PIB de 2019.

Se não vejamos. O ex-ministro das Finanças Mário Centeno disse na Assembleia da República, durante a apresentação do Programa de Estabilidade que as “iniciativas de proteção dos trabalhadores e dos seus postos de trabalho, bem como de apoio às empresas” estão “orçamentadas em cerca de 2 mil milhões de euros por mês (1% do PIB de 2019), incluindo medidas com incidência única”. Os dados podem ser vistos no Programa de Estabilidade (página 55).

Se admitirmos que essas medidas vão durar dois meses – hipótese que pode pecar por excesso uma vez que os pouco mais de 500 milhões de euros para a saúde são anuais –, estamos perante medidas da ordem dos 4 mil milhões de euros, cerca de 2% do PIB de 2019, para usar a mesma referência de Mário Centeno. Ou seja, as medidas de apoio à sobrevivência da economia explicam menos de um terço (32%) do défice público de 12,6 mil milhões de euros projectado para 2020, de acordo com o Orçamento Suplementar .

Levemos agora em conta outras medidas de carácter temporária. O Orçamento inicial de 2020 (página 61) previa medidas temporárias — que incluem o Novo Banco – no montante líquido de 905 milhões de euros. Some-se agora o valor orçamentado para a capitalização da TAP (946 milhões de euros) e temos cerca de 1,8 mil milhões de euros, cerca de 0,9% do PIB de 2019.

Ou seja, com as medidas de apoio à economia e as que são temporárias, como o Novo Banco e a TAP, explicamos menos de metade do défice público (5,8 mil milhões em 12,6 mil milhões). Mais de metade do défice público parece assim ser explicado pelo efeito da recessão, o que facilitará a correcção do desequilíbrio orçamental, assim que a economia começar a recuperar.

Esta prudência na gestão das contas públicas é uma boa notícia para os credores do país e para as agências de avaliação do risco da República mas, em contrapartida, é uma péssima notícia para agradar aos partidos à esquerda do PS e aos cidadãos em geral, que esperam um Estado generoso. Talvez seja por isso que o Governo não quer que se saiba exactamente como estão feitas as contas do Orçamento do Estado suplementar, como gosta que se chame.

É pena. Porque o Governo podia contribuir ainda mais para que todos compreendessem que as contas públicas têm de ter uma perspectiva de longo prazo. É verdade que o tem feito, alertando que não se pode gastar demasiado, que ameaçar financeiramente o Estado em cima de uma recessão história seria uma tragédia. Mas podia contribuir mais, com um Orçamento transparente, para que todos compreendêssemos o que está a fazer e para que todos estivéssemos a construir instituições mais fortes. Esta opacidade é apenas utilitária, para garantir o apoio ao Orçamento dos partidos à esquerda do PS. Mas condena-nos a uma democracia com pouco escrutínio.