1. Há dias escrevi aqui sobre Nápoles mas não contei tudo. Uma viagem começa sempre antes da partida mas o meu “antes”, em vez de se atardar na obrigatória apreciação dos patrimónios que me esperavam, passou por penosas horas de hesitação: como é que eu iria passar sem notícias do Alto Minho? Sem o dr. António Sousa Homem e as idiossincrasias dos seus? Sem a tia Benedita, matriarca da família, os tios, o gastrónomo e o tocador de oboé, os sobrinhos, a namorada Frízia de um deles, o dr. Paulo… sem, enfim, esse universo minhoto, conservador e recalcitrante que o dr. Homem teve a amabilidade generosa de passar para papel de jornal e depois para livro (“O Crepúsculo em Moledo”, Porto Editora)? E a que nos últimos tempos tanto me afeiçoara e que pura e simplesmente se me tornara indispensável? Sim, como estar em Nápoles sem o Minho? De modo que andei às voltas, levo o livro, melhor deixá-lo, que fazer? Carregar uma mala já de si carregada (é preciso ver que para as mulheres, mesmo para as do MeToo, fazer malas em estações do ano indefinidas onde tanto se pode precisar de umas sandálias como de uma gabardina, é tarefa longuíssima que normalmente acaba mal) e além disso misturar o Alto Minho do dr. António Sousa Homem com os Palácios do ex-Reino das Duas Sicílias, seria boa ideia? Seria, justamente seria: não me imaginava oito dias, oito — uma eternidade — sem aquelas neblinas matinais, as caminhadas pelos pinhais de Moledo, o cheiro a iodo de Afife, os almoços dominicais, o mundo da Tia Benedita, a memória de Dona Ester, a personalidade do tio Alberto, as reflexões (definitivas) de Dona Elaine, governanta e asa protectora do dr. António Sousa Homem, no seu eremitério. Sem eles, em suma.

2. Talvez deva aclarar tudo isto melhor, um leitor, mesmo distraído ou desconfiado, merece todo o respeito. Aclaro: um dia dei comigo a ler uma notícia onde era questão de um prefácio escrito por João Pereira Coutinho para um livro de alguém de quem nunca ouvira o nome – o dr. Sousa Homem, justamente — mas que importância? Não era o prefaciante tão seguro de si a avaliar o verbo alheio e a separar o trigo do joio em páginas impressas (e para só para mencionar esta sua fatia intelectual)?

De modo que fui à “Barata” que é para os meus lados e onde me tratam tão bem e pedi o livro mas o “qual deles?” que obtive como pronta resposta fez-me embaraçadamente tropeçar na minha própria ignorância: como era possível que António Sousa Homem tivesse escrito já três ou quatro livros sem que nunca tivesse ouvido pronunciar o seu nome, lido uma crítica, encontrado alguém, feliz ou infeliz, com a sua literatura? Envergonhadamente constatei que sim: era possível. Com um tom de voz falsamente seguro pedi “o último, naturalmente” e fugi dali para fora. Nessa noite, ao apagar a luz, com um cansaço jubiloso, feito de uma curiosidade que galopava à minha frente, uma surpresa sem nome e um raríssimo deleite, olhei distraidamente para o relógio: era madrugada.

3. Confesso a dificuldade: não serei talvez capaz de explicar o livro, nem de traduzir a natureza do meu agrado. Ele foi, como dizer? diferente. O adjectivo é, reconheço, modesto, mas não acho as palavras certas , paciência, mais vale não usar as erradas. Assim como assim, o melhor é agradecer ao autor ter escrito o livro e logo a seguir, agradecer-lhe ainda mais o mundo para onde nos leva. Mundo conservador e português dos quatro costados, anichado no Alto Minho e nisso reside uma das mais originais trouvailles da sua “diferença”: fazer de um diminuto perímetro do norte do país, o centro irradiador de uma história sem história, assente em meia dúzia de personagens, sempre os mesmos, e no olhar céptico-terno do autor sobre eles, conseguindo ser genial nesse “enjeu” (e deliciosamente sábio no seu poder de observação da natureza humana e no andar da vida).

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Sem alarido, antes de mansinho e em breves apontamentos, o dr. Sousa Homem sugere-nos que convivamos com a sua família consentindo-nos depois que o ouçamos discorrer sobre os seus membros: cada um deles ancorado no “Portugal” que respectivamente elegeu e reivindica como o “bom” e isto pelo menos desde D. Miguel até aos felizes dias do dr. António Costa.

Enquanto para nossa real felicidade – bem mais real que aquela que nos oferece o mesmo dr. António Costa, o que certamente o espantaria, mas as coisas são o que são – nos deixamos conduzir pela lupa do autor sobre o mundo, observado da janela de Moledo – de onde simplesmente ele não vê uma boa razão para sair, há mais de trinta anos. O mundo e o que ali o faz: das pessoas — quase sempre só as da sua família — aos seus comportamentos; dos pequenos nadas do quotidiano que logo são matéria e pretexto para subtis observações; das ocorrências no país que o dr. Sousa Homem vê de longe com uma irremovível lucidez que lhe dispensa a esmola de qualquer ilusão; dos “acontecimentos” que escrevem a pauta dos seus dias – a chegada do verão a Moledo, as idas a Caminha “beber uma água de Melgaço”, os preparativos do Natal sob a égide severa de Dona Elaine; o arroz de pato e o leite creme dos reencontros familiares no eremitério de Moledo quando acorrem parentes vindos de outros lugares do Alto Minho; a periódica viagem do retrato do “Senhor Dom Miguel” a restaurar a Braga, entregue aos cuidados inesperados da “sobrinha esquerdista da família”; as certezas sobre o país, atiradas com invejável segurança pelos irmãos – “ambos economistas” – do dr. Sousa Homem; a implacabilidade dos invernos, os nevoeiros, o aparecimento das giestas, os sentimentos, o tempo.

E por sobre tudo isso, uma melancolia fininha. A indisfarçável melancolia, nossa e a do dr. Sousa Homem.

4. Tinha absolutamente de conhecer o autor. Observá-lo in loco, conversar com ele, tirar-lhe o retrato com palavras; ouvi-lo a ouvir a sua própria memória. Conhecer os seus.

E assim lá parti para Nápoles mas com a ideia fixa de no regresso, vir a conhecer os Homem. Dando-se se o caso e a coincidência da Maria Luísa Lancastre (os Lancastres de Bertiandos, logo do Alto Minho) integrar também o nosso grupo excursionista ao sul de Itália, perguntei-lhe excitadamente entre um altar e um museu, que opinião tinha da família Homem e do meu autor, em particular. Qual não é o meu espanto quando lhe observo a pupila a vaguear “os Homem? Quem? Não estou ver…” Fiquei gelada: como, se viviam quase paredes meias, como era possível que não vizinhassem, pelo menos no verão? Mas não vizinhavam e pior, nem sequer se conheciam. Nápoles ficou subitamente coberta pelo meu desalento.

Foi então que salvificamente me lembrei do João Pereira Coutinho, claro, quem melhor que ele? Escrevera o prefácio deste ultimo livro, fora até a Moledo mais que uma vez, atardando-se mesmo em longas e julgo que reciprocamente muito interessantes dissertações com o dr. António Homem na varanda da sua casa. Mal cheguei, alentei-me: liguei, expus com um alto empenho na voz o que me trazia mas João Pereira Coutinho gelou-me ainda mais ao telefone do que Maria Luísa Lancastre numa rua napolitana: “ah Maria João eu percebo bem o seu interesse mas… (pausa delicada) o dr. António Sousa Homem não aprecia muito conhecer pessoas, já está um pouco cansado, a idade começa a pesar-lhe, a sobrinha dele, aquela que é esquerdista, sabe? certamente não ia deixar…”

Santo Deus estava tudo contra mim, uma em Napóles, outro em Leça da Palmeira? Privando-me ambos de oferecer ao leitor o retrato de alguém – escritor ainda por cima — do calibre, da subtileza, do poder de observação, da tão reconfortante visão do dr. Sousa Homem sobre esta coisa da vida? Insisti quanto pude mas o meu interlocutor parecia até que tinha um mandato, uma qualquer procuração do Alto Minho para afastar curiosos de Moledo, como se afastam moscas: que não.

Tão cedo não lerei João Pereira Coutinho.

5. Enquanto me ocupo de bater a mais acessíveis portas — quem sabe, a editora facilitará o desejado encontro? — e me apresso a ir comprar os outros três livros deste autor que naturalmente passou a um “preferido”, terei de pedir convictamente desculpa ao leitor por tanta lamúria, mais a mais correndo o risco de o distrair em tempo de eleições e tudo. A verdade porém é que me resta uma consolação e não é pequena: relembrei aqui ou dei a conhecer a muitos ou talvez mesmo muitíssimos leitores, uma originalíssima forma de escrita que rola como um seixo no mar gelado de Moledo. Enquanto secretamente acalento a esperança de que alguém – certamente não João Pereira Coutinho – faça chegar ao meu novo autor de cabeceira esta crónica desalentada (e que ele, como quem afasta uma cortina, afaste por um brevíssimo segundo o seu cepticismo e se comova.)

5. O leitor estranhará o uso sistemático neste texto, do “dr.” antes do nome do autor. Se ler o livro, perceberá que eu quase não tinha outro remédio. E claro, que faria o mesmo que eu. Boa leitura!

PS1: A última vez que vi o candidato Pedro Marques foi inopinada e surpreendentemente em cima de uma carro alegórico na última quadra carnavalesca, creio até que em festejos debaixo de chuva mas não recordo se estava ou não mascarado. O certo é que a “Europa” terá certamente feito esquecer ao candidato Marques, o ministro Marques que semanas antes, titulava ainda o (não) andamento dos nossos transportes públicos. A avaliar pelo que ocorreu em recente viagem Lisboa /Porto num comboio provou-se uma vez mais a gloriosa irresponsabilidade do ex-governante e a nefasta “marca” que deixou no “sector”: a casa de banho do Alfa Pendular não tinha, nunca teve, água; o comboio chegou com mais de meia de hora de atraso (facto que se tem repetido a torto e a direito quando dantes não era de todo costume); em cima desses trinta minutos, outro longo atraso: nas Devesas, a porta não abria. Passageiros irados e aos cachos tentavam que ela cumprisse a sua função de porta mas foi preciso acudirem funcionários que do exterior do comboio e após muito se esforçarem, permitiram o regresso a uma prosaica normalidade: que a porta abrisse, os passageiros saíssem, o comboio seguisse viagem. Acesa e vil vergonha.

PS2. Viva o Benfica de Bruno Lage (era capaz de não dirigir mal o sector ferroviário). E viva Ricardo Araújo Pereira que nos fornece pontualmente, de borla e ao domicílio, o melhor dos presentes: ele próprio.