Nancy tem quase 90 anos, pratica yoga todos os dias, circula por Nova Iorque de bicicleta, desassombrada perante o trânsito alucinado. Mas quando passa por um pequeno cemitério judaico, comprimido entre os prédios de Greenwich Village, o bairro boémio e iluminado da cidade que foi fundada por judeus sefarditas em fuga dos portugueses, Nancy treme. Treme porque as lápides estão vandalizadas e voltam a ser vandalizadas depois de reparadas. Treme pelo futuro dos seus filhos e dos seus netos. Não precisava de pedir a nacionalidade portuguesa – os seus filhos e netos são adultos e podem fazê-lo por direito próprio -, mas pediu-o. Não precisava da nacionalidade portuguesa para viajar livremente por cerca de 185 países do Mundo. O que Nancy e os descendentes dos judeus da Nação Portuguesa precisam, sejam eles detentores de um passaporte americano, israelita ou turco, é, antes de mais, de uma mensagem. A do perdão sem exigências, sem contrapartidas e sobretudo sem inquirições.

A proposta de alteração da Lei da Nacionalidade em relação à naturalização de descendentes de judeus sefarditas foi alterada. Em vez dos 2 anos de residência, que tanto chocou elementos do próprio PS, propõem agora os deputados deste partido uma exigência, aparentemente anódina, de “efetiva ligação à comunidade nacional”. Mas, tal como o anódino é uma substância que reduz a dor, diminuindo a sensibilidade do cérebro ou do sistema nervoso, também este aparente recuo serve apenas para anestesiar as consciências, sobretudo as dos elementos mais mundividentes e chocados do PS, com recurso a uma substância jurídica aparentemente inócua, quase lírica, que dá pelo nome de “efetiva ligação.” Desenganem-se: em sede de nacionalidade portuguesa a ligação efetiva tem uma tradição inquisidora que a torna tudo menos benevolente.

Foi em 1981 que o legislador português primeiro abraçou o conceito da ligação efetiva (na senda da lei de 1959, a Lei nº 2098), para inquirir e investigar a genuinidade dos laços que determinam a aquisição da nacionalidade portuguesa: o casamento e a adoção. O que se pretendia era evitar os casamentos e adoções de conveniência, ou seja, “a utilização dos novos preceitos para cobrir situações de autêntica fraude à intenção legislativa, em que a aquisição da nacionalidade portuguesa por um cônjuge estrangeiro não fosse o corolário lógico da união matrimonial mas em que, pelo contrário, o casamento fosse instrumentalizado”. Estas palavras do Professor Moura Ramos que tem, como poucos na Academia portuguesa, uma visão abrangente sobre esta lei estruturante, poderiam colocar-se na boca da deputada que tem dado a cara pela alteração à lei atual, substituindo apenas os vocábulos cônjuge e união matrimonial por descendente de judeu sefardita e ligação efetiva.

Só que a herança sefardita, que é uma herança cultural portuguesa, não é um casamento de conveniência, dependente da vontade. Os judeus sefarditas não estão a instrumentalizar a sua condição cultural e histórica. Eles possuem-na, assim o consigam provar. E o divórcio entre Portugal e os judeus de matriz portuguesa (uma matriz tão profunda que, durante o Mercantilismo, eram chamados de “A Nação Portuguesa”, ainda que fossem espanhóis), esse divórcio não ocorreu por sua vontade. Aconteceu porque Portugal esteve do lado errado da História, por razões que foram muito mais económicas, políticas e sociais, do que religiosas.

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A dita lei dos judeus sefarditas, cuja mãe foi o PS e pai o CDS-PP, foi uma tentativa de trazer para o lado certo da História o Portugal do qual nos orgulhamos: ecuménico, tolerante e humilde no perdão. É com esse orgulho que sinto o privilégio de explicar a nossa Lei perante descendentes de judeus sefarditas a cujo encontro tenho ido, sejam eles praticantes, agnósticos e mesmo ateus. É com a convicção da nossa elevação ética, de que não estamos a exigir nada em troca do pedido de perdão pelo erro e injustiça do Passado, que tenho respondido ao cepticismo dos mais desconfiados, a quem (fruto de amargas lições da História) custa a acreditar quando afirmo que Portugal não exige nenhum sacrifício material, nem que passem em qualquer teste, seja de residência, de número de viagens, de língua, de propriedade de imóveis, etc, que é todo o mundo de inquirições que a experiência recente da Lei da Nacionalidade tem demonstrado estar contido na lírica exigência da efetiva ligação.

Além do nosso pedido de perdão ser incondicional e sem inquirições, sempre me vangloriei da unanimidade com que a lei foi aprovada, da esquerda à direita, como se o mérito dessa raridade em Democracia fosse um pouco meu. E como uma promessa velada de que não existe antissemitismo em Portugal, o qual é uma motivação muito mais existencial para qualquer descendente de judeus do que a bagatela da livre circulação. Prometi-lhes que não haveria sequer uma inquirição de afetos, não obstante Portugal estar de braços abertos para o seu voluntário retorno emocional ou físico, permanente ou pontual, aliás, como o demonstrou com tanto sucesso a anterior titular da pasta do Turismo, despertando o Mundo Judaico para a descoberta e o investimento no nosso País.

Se a alteração à Lei for aprovada no Parlamento e depois regulamentada como o Governo bem entender, adstrito apenas a esse conceito indeterminado agora proposto, terei que responder a quem me perguntar que Portugal já não vai pedir o perdão pelo perdão. Em vez disso, vai inquirir se a ligação sefardita, ainda que provada por meios idóneos, os disponibiliza a dar mais de si, vai exigir “provas de amor” e o percurso de um “auto-de-fé” em relação à genuinidade desse desejo de recuperar a nacionalidade dos seus antepassados, não porque alguma coisa mudou no seu passado, mas porque, aparentemente, mudámos de ideias no nosso presente. Ora, se o fizermos, será preciso assumi-lo.

Custa-me a acreditar que assim seja, preferindo esperar o melhor de nós todos e o melhor dos políticos que elegemos e que, com as intenções certas, propõem melhorar as leis que nos regem. Só que esta não é uma lei que precisa de ser melhorada, ainda que possa sempre ser melhor regulamentada, refletindo a experiência adquirida.

A razão agora alegada para a necessidade de alteração do que foi consensualizado há sete anos e regulamentado há cinco, foi a de que a “mais nobre das intenções iniciais” corre o risco de ser “desvirtuada” — como afirmou a vice-presidente da bancada socialista num artigo de opinião publicado no Público, a 20.05.2020. E diz que assim é porque a integração de Portugal na UE “dá à nacionalidade portuguesa uma dimensão adicional inerente à Cidadania Europeia”, a da livre circulação pelo Mundo e do direito de residência nos Estados-Membros. Mas, pergunta-se: não ocorreu tal consenso pluripartidário em torno desta lei numa altura em que já éramos parte da UE, conscientes de todas as vantagens inerentes a essa cidadania supra-estatal, estabelecida pelo Tratado de Maastricht em 1992? A Lei então aprovada sempre permitiu dar a nacionalidade portuguesa a quem não tem ligação efetiva, entendida como uma ligação de facto e no Presente com o nosso País. O que a Lei sempre pediu foi apenas a verificação sobre se existia a tal ligação (sem adjetivá-la) à herança sefardita, fosse no passado recente ou longínquo. E, ainda assim, essa ligação ao passado tem que ser demonstrável, o que deixa de fora muitas pessoas que sempre se sentiram sefarditas mas que não o conseguem provar através dos critérios que essa Lei entendeu, acertadamente, como determinantes (o idioma familiar, o apelido ou a descendência genealógica).

Nas entrelinhas deste artigo de opinião da deputada do PS, que serve agora como substituto da sua lamentável anterior Justificação de Proposta, faz-se o paralelo com a situação dos netos de portugueses. Ora, mais um exemplo dos tortuosos caminhos que a Lei da Nacionalidade tem trilhado à boleia do conceito de ligação efetiva. Quando foi aparentemente reforçada a força jurídica da nacionalidade concedida aos netos dos imigrantes portugueses (aqueles cujos filhos, em vida, não pediram a nacionalidade quebrando a transmissão desse vínculo), “concedeu-se com uma mão o que se retirou com a outra”, queixaram-se azedamente as comunidades de imigrantes portugueses pelo Mundo fora. Sim, a nacionalidade dos netos passava a ser originária, palavrinha mágica que significa amor eterno, ou seja, transmissão de nacionalidade para todo o sempre e para toda a descendência, nascida ou por nascer. No entanto, à boleia do efeito anestesiante da expressão “laços de efetiva ligação” (seria um nome adequada para um filme), essa lei foi, depois regulamentada com uma lista de exigências aos netos: comprem ou arrendem uma casa por mais de 3 anos; façam viagens regulares a Portugal (sem explicar que regularidade é suficiente); mudem as vossas vidas e invistam num projeto de residência em Portugal, se forem estudantes por três anos, caso contrário, será por cinco; e dediquem-se à gramática portuguesa, caso os vossos pais tenham falhado, também, nessa missão por não viverem num país lusófono. E se fizerem tudo isso, então sim, acreditamos que o vosso desejo é genuíno e abrir-se-ão as portas da Cidadania Europeia. Foi esta a opção para os netos do legislador de um pequeno País que já foi grande e que se deslumbrou quando descobriu que ser Estado-Membro da União o tornava, de novo, numa noiva mais cobiçada.

Acontece que a emigração portuguesa, que tantos netos de portugueses gerou pelo Mundo e que nos deve entristecer por não termos tornado viável a sua sobrevivência económica no país que os viu nascer, não tem qualquer comparação com a razão que levou os judeus da Nação Portuguesa a deixarem de ser portugueses. Talvez por isso, todos os deputados sentados no Parlamento em 2013 se sentiram unidos como raras vezes. Porque entenderam que estavam a fazer História, a reparar a História e a alterar a História. Sentiram que a norma da naturalização dos descendentes de judeus sefarditas não tem nada a ver com a norma da aquisição em caso de casamento (ou união de facto), ou com a norma da nacionalidade dos netos cujos pais se desinteressaram de Portugal. Sentiram, quem sabe, que o conceito de ligação efetiva, que já tinha revelado o seu potencial de moeda de troca em alterações anteriores à Lei da Nacionalidade, era um corpo estranho à pureza da intenção que ali estava em causa. Ou, se calhar, não perceberam o verdadeiro alcance da mensagem que estavam a passar com esse gesto histórico de perdão pelo racismo virulento da Inquisição em relação aos descendentes dos judeus ibéricos, no contexto atual de propagação acelerada dessa carga viral sempre latente que é o antissemitismo. Talvez Nancy, a desassombrada idosa de Nova Iorque que ainda treme, lhes pudesse explicar.

Recuso-me a admitir que haja racismo nas intenções de qualquer deputado do meu Parlamento. O que não significa inocência. Nem significa que o racismo não vá à boleia de intenções desgovernadas. Basta ler sobre a história centenária do antissemitismo, basta testemunhar as consequências das palavras proferidas pelos líderes insanos que temos à frente de grandes nações, para compreender o efeito do dog whistling: as leis erradas na altura errada são como um apito cuja frequência só a audição apurada dos cães consegue captar. E desencadeiam uma cadeia impensável de consequências. Um país antigo e supostamente sábio como Portugal deveria sabê-lo.