Na semana em que um português, António Guterres, enfeita a capa da Time, é interessante notar a escassez da presença nacional na fachada da revista. Em cerca de 5000 edições, contas por alto, o nosso querido país apareceu em apenas cinco ocasiões nesse lugar de supremo prestígio da imprensa tradicional. Para cúmulo, nenhuma das ocasiões foi exactamente prestigiante.
Nos primeiros vinte e tal anos da Time, merecemos o desprezo absoluto em matéria de frontispício. Em 1946, estreámo-nos com Salazar, já então descrito como o “decano dos ditadores”. Outros vinte e tal anos de indiferença e, em 1974, a propósito do “golpe em Portugal” (cito), surgiu Spínola, o herói que ajudou a lançar-nos no PREC. Em 1975, a propósito do PREC, ou a “ameaça vermelha” (volto a citar), a Time revelou aos leitores o belo triunvirato Otelo Saraiva de Carvalho-Costa Gomes-Vasco Gonçalves. Passaram-se mais vinte e tal anos sem temáticas caseiras e, enfim, subiu à capa da Time em 2003 um assunto prometedor: a explosão (salvo seja) da prostituição em Bragança. Infelizmente, o assunto não cumpriu. Afinal, tratava-se de incompetência da jornalista – espanhola, se não me engano – que redigiu o artigo, e que confundiu os queixumes de meia dúzia de meretrizes locais contra meia dúzia de meretrizes importadas com um alegado “bairro europeu da luz vermelha”. Até agora, pois, havia um tirano, um germanófilo sem grande tino, três estarolas próximos do estalinismo ou da demência e hordas de rameiras inventadas. Agora, junta-se-lhes Guterres.
É natural que uma pessoa comece logo a imaginar. Guterres, o líder. Guterres, o visionário. Guterres, o inspirador. É também evidente que essa pessoa está equivocada e deve ser esclarecida de que falamos mesmo do eng. Guterres, o ex-futuro do socialismo moderno, o fugitivo do pântano, o emplastro dos refugiados e o secretário-geral da extraordinária ONU. Fatal e adequadamente, o fotógrafo da Time enfiou o eng. Guterres num charco por altura dos joelhos. Não terá sido necessário o fotógrafo requisitar a expressão que a criatura ostenta há décadas: uma coisa entre o desconsolado e o conformado, atitude encontrada com assiduidade nos sujeitos que chegam ao restaurante cinco minutos após o fecho deste. E que quando o apanham aberto demoram hora e meia a escolher o prato. No caso da capa, o contexto é o “aquecimento global”. Sob o título “O Nosso Planeta a Afundar-se”, pretende-se sugerir que o nível das águas está a subir e, não tarda, levará tudo à frente. Pelo ar derrotado do eng. Guterres, um degelo que o leve parece inevitável, e um favor pessoal que lhe fazem.
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