Dizem que as boas notícias não vendem. Que há um apetite humano pelo problema na base do sucesso ou insucesso de todas as histórias, verídicas ou ficcionais. Mas isso não explica tudo. Não pode explicar. A nossa atracção pela tragédia vai só até a um certo ponto – em princípio, aquele em que deixamos de ser meros voyeurs. Quase ninguém gosta daqueles espectáculos de teatro interactivo em que os actores se metem connosco. Ou de quando o realizador vira a câmara para nós. Queremos rir e chorar desalmadamente, como se tudo aquilo tivesse a ver connosco, sentirmo-nos compreendidos, identificados, mas, no fundo, apenas porque sabemos que não somos realmente nós. É um mero exercício. Uma catarse, a função social histórica da arte e, hoje, dos jogos de computador. Uma substituição, uma equivalência. Uma forma antiquíssima de realidade virtual, de simulacro. Porque, quando as más notícias nos envolvem, quando podem trazer sofrimento real, viramos a cara. Fechamos os olhos. Cobrimos os ouvidos. É por isso que tantos abrandam quando vêem acidentes e aceleram quando são eles a bater. Não queremos saber.

Esta semana, uma newsletter do New York Times trazia um título curioso. Faz ideia de qual o animal que mais mata no mundo? Não são os tubarões, nem os leões, nem os crocodilos, nem sequer os cães raivosos, nem os lobos, nem as orcas, nenhum animal selvagem, nenhum touro numa largada sangrenta, nenhuma ave de rapina, nenhum morcego carregado de vírus. É o mosquito. O mosquito. O título dizia: “Mosquitoes are Winning” e reportava-se a um conjunto de histórias da jornalista Stephanie Nolen que o jornal publicava naquele dia e que qualificava de “alarmantes”.

Depois de termos conseguido reduzir em mais de um terço as mortes por malária no início do século graças a muita investigação, sensibilização, insecticidas e redes mosquiteiras, elas começaram, estranhamente, a subir, de novo, desde 2019. Duas razões são apontadas: a adaptação dos mosquitos, que se estarão a tornar mais resistentes, e o aquecimento global, que estará a criar mais habitats adequados à prevalência das espécies mais perigosas. No ano passado, Texas, Flórida e Maryland registaram casos de transmissão de malária, coisa que há 20 anos não acontecia em solo americano. E a dengue, doença que tínhamos por tipicamente tropical, já é um problema em Paris, que luta por erradicá-la antes dos Jogos Olímpicos do ano que vem. A propósito: o mosquito responsável pela transmissão foi identificado há dias, pela primeira vez, em Lisboa.

Não é motivo para pânico. Desde 2017 que há registo da presença do bicharoco em Portugal continental e nem por isso foram detectados casos de transmissão. Mas lia a notícia enquanto bebia uma imperial na praia, no início de Outubro, e pensava em como é peculiar o bicho humano. Pensava no endurecimento das manifestações dos jovens activistas climáticos em Portugal e na condenação generalizada de que têm sido alvo. Na tinta atirada cobardemente ao ministro, nos cortes de estradas, nestas manobras simplistas que, na prática, só resultam em hostilidade à causa (e já agora, em danos imediatos ao ambiente). Mas, depois, lembrei-me dos mosquitos. De como vamos de guarda levantada e dentes cerrados para tanta ameaça ostensiva e a baixamos quando tomamos, erradamente, por inofensivas certas figuras mansas diante de nós.

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Lembrei-me das posições tomadas nos dias seguintes por dois fazeres de opinião de direita sobre o assunto e que, pessoalmente, muito me surpreenderam: Pedro Mexia e João Miguel Tavares, um na SIC, outro no Público, em tons diferentes, mas, fundamentalmente, concordando em desagravar a preocupação com as questões ambientais, o primeiro negando que exista evidência da relação entre capitalismo e alterações climáticas, o segundo dizendo, basicamente, que se poluirmos um bocadinho menos e reciclarmos um bocadinho mais, isto vai lá.

É curioso. O nosso apetite pelas más notícias é um logro. Gostamos de nos armar em mauzões desde o pátio da escola, mas fugimos a sete pés assim que ameaça um perigo real. António Guterres não é a pessoa mais agradável de ouvir, nunca foi, mas não é pela boca que hoje diz o que diz que ninguém o ouve; é pelos ouvidos que não querem ouvir o que é dito. Como assim abrimos as portas do inferno?

Bebo a minha imperial no dia mais quente de Outubro alguma vez registado em 12 estações do IPMA, com cinco a oito graus acima da média para a época. Só na primeira metade do ano ardeu no Canadá uma área superior à do meu país inteiro. Imagine o João Miguel Tavares que tinha ardido Portugal de Janeiro para cá. Todo, como a cabeça dum fósforo. De Ponte de Lima a Sagres, de Sintra a Elvas, incluindo o texto dele (o meu não, que só tem existência digital). Kaput. Desaparecido. Apagado do mapa. A Europa passado a acabar numa loja de caramelos em Badajoz. Caramelos queimados. Pensei nos 42 rios que secaram nos últimos dias na Amazónia. Pensei em quantos anos demorará a subida das águas do mar a engolir os escassos metros de areal daquela praia da linha de Cascais, onde agora rapazes e raparigas já conversam e jogam raquetes com água pelos tornozelos, e em como também eu estou ali a beber a minha imperial despreocupadamente, ou resignadamente, como será mais correcto dizer, perante a absoluta e absurda sensação de insignificância.

As alterações climáticas têm o problema de começarem por parecer agradáveis – um dia de praia maravilhoso em Outubro… Fosse chuva contínua em Agosto e talvez já andássemos todos a despejar baldes de tinta pela cabeça abaixo uns dos outros. Nenhum outro tema deveria unir-nos mais. Em nenhum outro assunto deveríamos estar todos do mesmo lado, porque é desse lado do problema que estamos: o lado de baixo. Mas os tempos que vivemos acabam todos em trincheiras. A tensão no ar de quem só ameaça bater, pelo menos até ao dia em que, realmente, bata ou seja batido, presta-se a isto. O simplismo moralista e maniqueísta de certo activismo ambiental está a provocar a reacção irritada dos outrora moderados, mas seria um erro clamoroso se a direita responsável deixasse o tema da acção climática ficar para bandeira da esquerda, como já tantas vezes deixou que se fizesse à liberdade a democracia simbolizadas pelo 25 de Abril.

Até hoje, o apocalipse foi desmentido 100% das vezes”, diz o belíssimo título do artigo de João Miguel Tavares. Somos absolutamente incapazes “de prever o futuro”, garante. Não creio. Aliás, não é verdade, sequer. Não somos certamente capazes de prever todo o futuro, mas já não vivemos no século X. Sabemos muito do que vai acontecer pela mesma razão que sabemos tudo o que sabemos em ciência: há causas e consequências; a física e a química não sucedem por obra e graça do divino espírito santo, pelas vontades momentâneas de um deus criador ou do acaso. O que temos são enormes limitações quando se trata de calcular o resultado combinado de todas as variantes. De que forma tudo o que está a mudar se vai afectar, exponenciar ou anular mutuamente? Veremos de que são capazes as novas vacinas para a malária, e a inteligência artificial, e a estupidez humana.

Mas os mosquitos não querem saber de nada disso. Mato o primeiro com uma palmada, e o segundo; escapa-me o terceiro. Picam o tipo de esquerda e o de direita, o ambientalista e o negacionista. Sabem-lhe todos ao mesmo: tudo a frango. Caímos pelas grandes ou pelas pequenas razões, mas acabamos sempre por cair. O mundo pode não acabar, mas não precisa de nós para nada. Termino a imperial, peço um café e a conta. É a única que já serei capaz de pagar.