Em 1974, George Steiner participou como orador nas conceituadas Massey Lectures, debruçando-se sobre o vazio espiritual presente nas sociedades ocidentais em resultado do declínio religioso decretado pela morte de deus:

“a decadência de uma doutrina cristã abrangente deixou em desordem, ou em branco, perceções essenciais de justiça social, do significado da história humana, das relações entre a mente e o corpo, da posição do conhecimento na nossa conduta moral.”

Desta desordem resultou uma nostalgia do absoluto (expressão que daria título ao livro):

“Essa nostalgia foi diretamente provocada pelo declínio na sociedade e no homem ocidentais da antiga e magnífica arquitetura da certeza religiosa. Neste momento do século XX, estamos sedentos como nunca de mitos, de uma explicação total: ansiamos por uma profecia garantida.”

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De acordo com Steiner, esta nostalgia e esta ânsia conduziram ao sucesso de um conjunto de teorias que, apresentando-se como pós-religiosas, se traduzem em estruturas próximas e substitutas do fenómeno religioso. Steiner designa esses movimentos como mitologias, que podem ser identificadas a partir de três condições: 1) são sistemas de pensamento com pretensões de totalidade, apresentando uma história total do homem no mundo; 2) assentam em textos canónicos, trazidos pelo génio fundador, e que conduzem a conflitos entre ortodoxia e heresia; 3) avançam uma linguagem própria, com metáforas, símbolos e gestos cruciais.

E quais são as grandes mitologias do século XX? As três primeiras palestras identificam três mitologias racionais: o marxismo, a psicologia freudiana e a antropologia de Lévi-Strauss; a quarta debruça-se sobre as mitologias irracionais, desde as mistificações orientais às crenças anticientíficas. Nestas quatro mitologias encontramos: 1) uma narrativa totalizante, que explica como chegamos até aqui e o que está errado no atual estado de coisas; 2) textos fundadores, que geram confronto de interpretações e conflitos internos; e 3) recurso a um vocabulário próprio que é preciso consagrar e divulgar.

Ora, esta grelha de análise de Steiner, apresentada há quase 50 anos, revela hoje uma enorme pertinência. Ela permite-nos compreender melhor o Social Justice Movement, geralmente designado como cultura woke. Uma das dificuldades do estudo adequado deste movimento prende-se com o facto de ele ser resultado da convergência de várias posições e autores – mas identifica-se facilmente a influência do marxismo, da psicanálise e do estruturalismo neste conjunto de ideias que, desde a década de 70, tem moldado a Nova Esquerda, e cujos lastros de anti-cientificidade remontam à Escola de Frankfurt. O resultado só poderia ser a construção de uma grande mitologia, que apresenta as três condições identificadas por Steiner:

Em primeiro lugar, o wokismo apresenta-se como totalizante: a sua estrutura narrativa permite explicar o estado atual do mundo e o lugar do homem, bem como todos os seus problemas. Tudo isto seria resultado de uma construção patriarcal, heterossexual e branca, pelo que um mundo justo só pode ser assegurado com o desaparecimento do agente corruptor. Tal significa esvaziar de significado aquelas categorias descritivas: é por essa razão que se fala em “destruição do patriarcado”, “fim da heteronormatividade” e “morte do homem branco”. Identificado o agente do mal, só a sua eliminação permitirá a salvação da sociedade.

Em segundo lugar, é possível reconhecer um conjunto de textos sagrados, que determinam o modo como devemos orientar a nossa vida. Esses textos provêm de vários autores, como Michel Foucault, Jacques Derrida, Herbert Marcuse, Jacques Lacan ou Frantz Fanon, e permitiram lançar as bases para um conjunto de teorias, como o pós-colonialismo, a teoria queer, a teoria crítica da raça e o feminismo. Por forma a não dispersar as diferentes lutas, Kimberlé Crenshaw desenvolveu a ideia de interseccionalidade, pensada para o cruzamento entre reivindicações feministas e raciais, e que faz notar a relação existente entre todas as lutas. O objetivo seria manter os grupos oprimidos unidos contra o grupo opressor – mas a prática tem-se traduzido em contínuas lutas de purificação interna, com antigos companheiros de luta transformados em inimigos quando questionam as demandas mais vanguardistas do movimento. Pensemos em J. K. Rowling ou Margaret Atwood, denunciadas por TERFismo; Caitlyn Jenner, criticada por ser republicana; ou Arielle Scarcella, acusada de transfobismo por ser lésbica.

Em terceiro lugar, há todo um vocabulário que é preciso explicar e impor: interseccionalidade, heteropatriarcado, homonacionalismo, heteronormatividade, binário, TERF, Queer, etc.. A questão da linguagem é de suma importância: a introdução de um vocabulário específico tem como objetivo criar as condições para que a mitologia se imponha de forma hegemónica, afastando outros discursos possíveis. E a estratégia é particularmente perversa: apresentando-se como fomentadora de inclusão, o que se pretende é impor uma nova forma de ver o mundo e percecionar as dinâmicas sociais. A mais recente campanha ABCLGBTQIA+ pretende exatamente divulgar esse novo vocabulário para condicionar o nosso pensamento. Não é inclusão, é substituição – e esta é, necessariamente, excludente.

Na verdade, a reivindicação de inclusão não passa de uma ilusão: todos os projetos políticos geram exclusões e os projetos mitológicos mais do que todos os outros. Começam pela exclusão dos crentes iniciais que ousam questionar os textos ou valores fundamentais. Continuam com a exclusão daqueles que, partilhando a mesma identidade, se recusam a partilhar as mesmas ideias. E terminam com a exclusão de todos aqueles que se recusam a aceitar que esta verdade representa toda a verdade. Para cada um destes momentos, a solução é o silenciamento, com acusações de fobismos vários, discriminação, discurso de ódio ou incentivo à violência.

Mas não é nada que nos deva surpreender. Um dos pais fundadores do atual movimento de justiça social, Herbert Marcuse, publicou em 1965, um ensaio em que redescreve os valores da tolerância e da liberdade de expressão. Para Marcuse, esses valores só fazem sentido quando toda a sociedade tiver condições para pensar livremente. Até lá, nenhuma tolerância deve ser dada aos que se opõem à construção do novo mundo. O texto de Marcuse é hoje de importância vital (voltaremos a ele), pois tem vindo a ser dogmaticamente seguido e aplicado por estes movimentos. Fala-se em inclusão, mas a sua verdadeira natureza é a da radical intolerância.