O dia 7 de novembro fica marcado por uma lufada de ar fresco e ânimo na sociedade norte-americana. Na Washington Square Park, o clima foi de esperança e otimismo por parte dos nova-iorquinos. O espírito do eleitorado do Partido dos Democratas e dos seus simpatizantes no centro das grandes cidades norte-americanas foi retratado na tarde de sábado como uma mensagem de solidariedade e de igualdade, enaltecendo que os EUA estão mais que preparados para continuar a representar os princípios e valores da democracia. O clima crispado existente, devido à turbulência da presidência de Donald Trump, foi subitamente acalmado pela vitória de Joe Biden nas presidenciais de 2020. Bandeiras dos EUA, do movimento “Black Lives Matter” e LGBT foram levadas para a rua, trazendo a esperança de que a superpotência está de volta, preparada para desempenhar o papel de defensor dos princípios da democracia e dos direitos humanos. O facto de Donald Trump ainda não ter reconhecido Joe Biden como o novo presidente dos Estados Unidos da América, em nada tem impedido a euforia e felicidade não só de grande parte do povo norte-americano como da comunidade internacional.

Biden surpreendeu tudo e todos. Embora prejudicado pela sua fraca comunicação, Biden conseguiu vencer as eleições num dos períodos mais conturbados da história dos EUA. Nunca nenhum candidato à Casa Branca tinha recebido tantos votos. Com 74 milhões de votos, o novo Presidente dos EUA garantiu uma vitória clara nas eleições de 2020. Apesar da crispação existente nestas eleições (acusações de fraude, pedidos de recontagem de votos, etc.), a democracia deu evidências claras de que está viva. Nunca tantos cidadãos norte-americanos tinham votado nas eleições presidenciais, demonstrando a vontade do povo em querer uma mudança tanto do lado dos Democratas como também dos Republicanos. A insatisfação do eleitorado democrata fez-se ouvir, afirmando-se, perante a preocupação do eleitorado republicano, em querer ter um governo com medidas e iniciativas de esquerda.

No entanto, não tendo ganho com uma margem avassaladora, Biden, de forma a evitar uma crise política e social, terá que ser prudente. O trumpismo é uma realidade na vida política norte-americana, o novo presidente dos EUA não poderá ignorá-lo. E, Biden sabe-o muito bem. O facto de muitos norte-americanos não o quererem como presidente fará com que Joe Biden tenha um grande desafio pela frente. Desta forma, considerou-se um presidente de todos e não apenas do seu eleitorado. Neste sentido, referiu a importância de não considerar os opositores como inimigos, dirigindo-se a todos os norte-americanos no decorrer do seu primeiro discurso enquanto presidente dos EUA. Com um discurso controlado e sucinto, fez questão de apelar à união de todos os cidadãos e vincar necessidade de estabilidade de que o país precisa.

Estabeleceu como prioridade controlar a pandemia, para que seja possível voltar a colocar a economia nos padrões a que os cidadãos americanos estão habituados. Com compaixão perante todos, Biden referiu a importância em acabar com o vírus de modo a alcançar a prosperidade pretendida, reconstruindo e fortalecendo a classe média.

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O facto de estarmos a viver uma pandemia não ajudou a estratégia de Trump. Caso o vírus tivesse sido controlado ainda na China, provavelmente assistiríamos a um segundo mandato de Donald Trump. Apesar do ex-presidente dos EUA ter adotado medidas que contribuíram para o crescimento económico interno, o seu posicionamento em relação ao vírus fez com que existisse uma maior divisão na população norte-americana: o vírus tornado um assunto político e não apenas social. E. sendo os Estados Unidos um dos países mais afetados pela pandemia, a presidência de Trump acabou por demonstrar a falta de competências necessárias e de responsabilidade que uma superpotência deve ter perante a sua população e a comunidade internacional.

Trump, pretendendo por fim aos consensos bipartidários, colocou em questão os princípios e objetivos da democracia e das instituições que a representam. Já no poder reforçou a sua posição política, contribuindo para uma maior divergência entre democratas e republicanos. Juntamente com a sua pouca “habilidade” política e diplomática e constantes confrontos com a imprensa, o ex-presidente ganhou fama de incendiário e desestabilizador. Trump foi visto internacionalmente como uma forte ameaça às democracias. Neste sentido, Joe Biden acaba por simbolizar a era de Obama. Já com o cargo de vice-presidente dos EUA no currículo, o democrata assume-se como o maior opositor ao posicionamento “anti-sistema” de Trump. A sua posição em relação à saúde, aos impostos, às mudanças climáticas, à China e ao papel dos Estados Unidos enquanto superpotência, alegrou o eleitorado democrata e até mesmo muitos dos eleitores “indecisos”. Desta forma, do ponto de vista dos Democratas, dos simpatizantes e dos afro e latino-americanos, com Joe Biden na Casa Branca, uma nova esperança renasceu.

Neste sentido, o dia 7 de novembro fica também marcado por assistirmos à eleição da primeira mulher vice-presidente dos EUA, Kamala Harris. Com a sua convicção e ambição, simboliza o avanço das nossas democracias. A audácia de Joe Biden em escolher Kamala, demonstra a vontade em reforçar a afirmação feminina e dos afro-americanos e hispânicos, sublinhando que os EUA continuam a ser um país exemplar para todo o globo.

Logo, as expetativas são ambiciosas. Biden terá pela frente um enorme desafio, já que terá de normalizar e estabilizar o caos vivido nos EUA. Para isso, antes de por as suas medidas em prática, terá de unir o povo norte-americano e garantir que servirá todos os norte-americanos. O novo presidente terá de ser capaz de unir o eleitorado de Trump com o resto da população. É verdade que Donald Trump foi capaz de alavancar a economia norte-americana, mas ao ter questionado instituições que representam os princípios e valores da democracia, fez com que a preocupação em mantê-los e fortalecê-los aumentasse. Desta forma, outros valores se levantaram, e a necessidade de estabilidade, tanto nos EUA como na comunidade internacional, tornou-se uma prioridade.

No que diz respeito ao papel desempenhado pelos Estados Unidos enquanto superpotência mundial, na perspetiva de Biden, o posicionamento e as medidas adotadas por Trump são questionáveis e representam até uma ameaça à hegemonia norte-americana. Relativamente a este ponto, o democrata estabeleceu como prioridade consolidar a relação com os aliados, nomeadamente com os países-membro da NATO e em tomar iniciativas de cooperação e desenvolvimento na comunidade internacional. Logo, com Biden na Casa Branca, a expetativa, no contexto da comunidade internacional, será alta no que diz respeito à aproximação dos EUA aos seus aliados. Neste seguimento, surge a posição de Joe Biden em relação à China. Biden considera que o comportamento de Trump, nesta questão, tem sido desastroso. Assim, o democrata tenciona consertar e reformar a relação entre Washington e Pequim. Sabendo da potencial ameaça que a China representa para a ordem mundial, Joe Biden tentará conter as medidas e comportamentos de Pequim e consertar a relação económica e financeira existente. Para isso e como já referido, terá como prioridade fortalecer a relação com os aliados para que possa contar com o seu apoio, promovendo um espírito de cooperação e contribuindo para um mundo mais multipolar.

No âmbito da saúde, Biden sabe que o que o seu eleitorado lhe pede é demasiado ambicioso face a outras prioridades existentes. Assim, contribuirá para um recomeço do ObamaCare mas de uma forma moderada. Já no que toca aos impostos, Biden critica fortemente os cortes nos impostos criados por Trump. Afirma que estes apenas beneficiam as grandes empresas e as pessoas com maiores rendimentos. Logo, pretende aumentar o imposto sobre o rendimento dos escalões mais altos e aplicar mais taxas aos que ganham mais de 400 mil dólares por ano. No que toca a despesas, as conceções de Biden darão origem a um maior protagonismo do Estado, mas o seu propósito será solucionar as adversidades vividas internamente no país. A reconstrução de infraestruturas, a questão das mudanças climáticas e o apoio às pequenas e médias empresas de forma a combater os danos provocados pelo novo coronavírus foram estipulados pelo democrata como prioridade. Poderá dizer-se que estas iniciativas têm mais um carácter público do que privado. Certo, mas para além de a preocupação ser comum a todos os cidadãos, estender-se-á ao sector privado, contribuindo para o crescimento deste.

No que diz respeito à questão das mudanças climáticas, o posicionamento de Biden representa a aposta no avanço da melhoria desta problemática comum a todos. Neste sentido, o democrata propõe um investimento de dois biliões de dólares para atingir a meta de 100% de energia limpa em 2035, que poderá originar uma participação considerável do sector privado. Desta forma, poderemos considerar que os seus planos são válidos e promissores: o regresso dos EUA ao Tratado de Paris é um cenário muito provável.

Biden terá um enorme desafio pela frente. Criar um consenso entre o que a ala esquerda pretende e dar seguimento ao que a anterior presidência fez. Segundo a revista The Economist, apesar das medidas pretendidas pelos seus apoiantes, Biden, para além de não apostar totalmente no Obama Medicare for All, não irá banir a energia nuclear para surpresa dos republicanos. As divergências dentro do Partido Democrata também são uma realidade que Biden conhece muito bem. Desta forma, com Kamala Harris e Barack Obama ao seu lado, fez-nos perceber que Biden não é o político pouco “habilidoso” e “dorminhoco” que aparentou ser no decorrer das eleições.

Uma vez que o mundo moderno nunca tinha sido posto à prova com uma pandemia desta dimensão, o Democrata terá que contar com todos ao seu lado para que possa gerir cautelosamente as suas prioridades. Focado em recuperar a economia norte-americana, Joe Biden apresenta-se como a continuação de Obama, mas de uma forma moderada. Pretenderá estimular a economia, aumentando o apoio aos desempregados, às pequenas e médias empresas e a ajuda aos governos locais e regionais através de empréstimos e doações. Internamente, pretende apostar na pesquisa e desenvolvimento da ciência, reformar as medidas de governo de Trump na questão da migração e no aumento e estabilidade da classe média, que se traduzirá num maior investimento na educação e na saúde.

Por último, para complicar ainda mais o primeiro mandato de Biden na Casa Branca, caso os democratas não ganhem a maioria no Senado, os republicanos não facilitarão a vida ao novo presidente. Mas com uma enorme experiência em matérias legislativas devido aos 36 anos que trabalhou no Senado, Joe Biden é conhecido pela capacidade em estabelecer consensos partidários com os rRepublicanos. Considerando o período que vivemos, poderemos dizer que não haveria melhor pessoa que Biden para presidente dos EUA. Assim, Biden poderá contrariar todos os que o consideraram uma má aposta por parte dos democratas.

Ao afirmar-se como um presidente que irá servir todos os norte-americanos e que irá refortalecer as relações com os aliados, o democrata aproximou-se da opinião pública e da maior parte das elites. Terá agora a oportunidade de curar e unir todos os cidadãos como uma nação e de contribuir diplomaticamente em prol dos valores democráticos para o desenvolvimento e cooperação internacional.

Apenas assim, Joe Biden garantirá a estabilidade que os EUA e a comunidade internacional precisam, so help him God.