Uma das queixas que mais se ouvem é que não há verdadeiros estadistas. Onde estão as mulheres e homens como Margaret Thatcher, Churchill, Ronald Reagan, de Gaulle, Mitterrand ou Adenauer, Helmut Kohl, Golda Meir ou, em Portugal, Mário Soares e Francisco Sá Carneiro? Por que razão há a percepção que os políticos de hoje, ao contrário dos de anteriormente, não chegam às pessoas?

Há várias respostas e a primeira e mais imediata é que, no seu tempo, estas figuras não foram tão consensuais como são agora. Churchill foi menosprezado, Thatcher atacada, Reagan gozado, Sá Carneiro apontado de inconsequente e Soares criticado por desconhecer os dossiers. Se há algo fantástico que a morte traz consigo é a imortalidade. Mas esta resposta não é suficiente, pois o tempo também confirmou que estas figuras políticas deixaram uma marca que perdura. Precisamente o que não se antevê entre os actuais governantes. O que se passa?

Uma boa possível resposta encontrei-a esta semana em Matthew Goodwin, num livro a que também fiz referência há oito dias (‘Values, Voice and Virtue”), e cuja tradução e publicação em Portugal seria de toda a conveniência. Goodwin analisa a realidade britânica, mas reconhece que esta é extensível à maioria dos países ocidentais. E o que se passa no Reino Unido desde os anos 60 foi o surgimento de uma nova elite, universitária, urbana e cosmopolita, que se diz tolerante em certas questões como sejam as ambientais ou as relativas à liberdade e identidade sexual de cada um, mas intolerantes quanto aos que dela discordam. Intolerante porque desconsidera quem não tenha a mesma educação universitária, a mesma abertura cultural dessa nova classe instruída que (devido à propagação das universidades e aumento das vagas nos últimos 40 anos) constitui um número razoável da população britânica. Uma nova elite que substituiu a velha, de cariz mais aristocrática e empresarial e que nutria uma ligação ao país e à comunidade, um sentido de dever e de patriotismo e que, por essa via, tinha pontos em comum com a maioria da população.

O que sucede com a nova elite, e novamente de acordo com Goodwin, foi a troca de valores comunitários por outros de cariz global. Mais que britânica, ou sequer inglesa, esta nova elite vê-se como cidadã do mundo e sente-se mais em casa num Starbucks em Tóquio, São Francisco ou Istambul que num pub numa cidade de província inglesa. Um grupo indistinto de pessoas que assumiu para si valores e modos de vida que chocam com as da maioria da população que foi prejudicada com a globalização devido ao fecho de muitas empresas tradicionais com implementação social nas respectivas localidades.

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Esta diferença social, que já não é de classes, não é de rendimentos, mas cultural e educacional, corresponde a um corte na coesão nacional do Reino Unido e explica o Brexit, Boris Johnson e a vitória do Partido Conservador em 2019. Mas explica também, e acima de tudo, a dificuldade de um político se fazer ouvir e entender. A dificuldade, hoje em dia, de um político compreender a complexidade social do seu país e de transmitir a sua visão de modo a ser entendível pelos dois lados, ou melhor, de forma a que uma proposta sua não beneficie um lado e se torne contraproducente do outro. O antagonismo é tal que se torna complicado, senão impossível, propor algo que vá ao encontro dos interesses das várias facções.

Esta é a maior razão para a percepção de os políticos de hoje não conseguirem falar com as pessoas. Não conseguirem cativá-las, conquistá-las com as suas ideias. Em Portugal, por exemplo, isso reflecte-se na divisão do eleitorado em mais partidos e na correspondente queda do PS e do PSD. Há mais partidos porque há mais pontos de vista que não encontram plataformas comuns. No entanto, a razão não é a falta de qualidade dos políticos, mas a complexidade da nova realidade social.

Outra explicação são as redes sociais que minam a autoridade política. O fenómeno tem aspectos positivos, mas também comporta riscos. Nos anos 80, quando um governante falava era preciso esperar pelo dia seguinte para se comprar o jornal e ler o comentário de algum jornalista ou colunista. Por vezes aguardava-se pelo fim-de-semana. Quem quisesse dar-se ao trabalho teria de ir ao quiosque ou à papelaria comprar o jornal e ler o artigo. Para trocar impressões era preciso estar casa e telefonar a alguém que estivesse em casa e combinar um encontro num café. E os efeitos dessa conversa ficavam por aqui. Hoje, um governante fala e as suas palavras são imediatamente dissecadas nas redes sociais às quais milhões de pessoas têm acesso. A autoridade, para o bem e para o mal, desapareceu. E uma das consequências é o sentimento de instabilidade e de navegação à vista.

Como resolver isto? Não há soluções mágicas, mas uma certa dose de bom senso, a noção que as redes sociais cansam, esgotam as pessoas e que se continuarmos como até aqui corremos o risco de liquidar a democracia, ou melhor, de liquidar o benefício de dúvida que sustenta a vida em comunidade e que permite que o medo de falar não se sobreponha à liberdade de exprimir opiniões e de discutir ideias. Este pode ser um ponto de partida. Como é natural levará muito tempo a impor-se, pois torna-se necessário que a maioria da população veja nas análises não cuidadas e superficiais aquilo que elas são: crenças, a maioria das vezes enviesadas.

O problema não é de resolução fácil, mas obriga a que se faça um diagnóstico capaz. Culpar o mensageiro é a resposta mais fácil, mas raramente é a acertada.

P.S: enquanto leitor de banda desenhada franco-belga, não posso deixar passar a edição em português do último Blake e Mortimer, ‘A Arte da Guerra’, com desenhos de Floc’h. Floc’h é o autor de outras obras magníficas como ‘Encontro em Sevenoaks’, ‘O dossier Harding’ e ‘À procura de sir Malcolm’ (publicados entre nós pela extinta Meribérica) e com argumento do magistral François Rivière. Neste ‘A Arte da Guerra’, Floc’h não traz apenas a ‘pop art’ para a BD (forma de arte que entusiasmou Hergé), como consegue contar-nos uma história em que o desenho é o que trava o nosso avanço pelas páginas. Cada quadradinho é uma obra de arte de desenho e de cor, e os diálogos se tornam pausas para que apreciemos o que de melhor se pode fazer em banda desenhada.