Já em finais de junho, na Comissão Europeia, em Bruxelas, e em Genebra, reinava o pessimismo sobre a renovação do Acordo de Cereais do Mar Negro (BSGI). Pessoalmente duvidei desse pessimismo, mas muitos dos analistas previam que, desta vez, não iria existir qualquer acordo porque a Rússia impunha condições de que não iria abdicar e os danos infligidos a 4 de junho sobre o seu pipeline de transporte de amoníaco colocavam em causa a exportação dos fertilizantes. Por outro lado, a Ucrânia talvez não estivesse assim tão interessada na manutenção do Acordo do Mar Negro porque o ritmo de saída dos navios por esta via dava sinais de forte quebra desde maio e as perspetivas de exportação nesta campanha eram, naturalmente, de redução. Já estavam a ser privilegiadas as chamadas Vias de Solidariedade, através dos países vizinhos, para além da suspensão dos direitos e quotas sobre todas as exportações ucranianas destinadas à União Europeia – sobretudo os cereais e oleaginosas que tanto necessitamos, tal como a Espanha – numa tentativa de ajudar o país a ter mais fontes de financiamento e a lidar com as consequências económicas da guerra. Em todo o caso, a Via Mar Negro está longe de ser descartável.

Acontece, em simultâneo, um conflito “discreto” nas Vias de Solidariedade que decorre das posições assumidas pelos 5 Estados-membros vizinhos da Ucrânia – Hungria, Polónia, Bulgária, Roménia e Eslováquia – que, como era de esperar, pretendem a prorrogação da decisão de banir o consumo de cereais da Ucrânia de 15 de setembro até final do ano. E isto acontece por razões de mercado: no início de junho contactos informais com a Hungria revelam à IACA que a indústria deste país necessita de importar pelo menos 3 milhões de toneladas de milho e que, apesar disso, não podem consumir o cereal que atravessa o seu território enquanto os produtores locais não venderem o seu. Mas os produtores locais não vendem na expectativa de obtenção de melhores preços. Fica a questão: será uma falácia a questão dos stocks ou mero jogo político-económico, que já levou, imagine-se, a Áustria, a reivindicar apoios aos seus agricultores pelos cereais provenientes da Ucrânia? Serão estas vias assim tão solidárias?

Os últimos dados disponíveis apontam para a saída da Ucrânia de um total de 71,8 milhões de toneladas. Destas, que incluem também derivados de cereais e produtos agrícolas em geral, 42,4 milhões saíram para as Vias de Solidariedade e 29,6 milhões ao abrigo do Acordo do Mar Negro. Parece pouco, mas importa muito, sobretudo a Portugal. Olhando para os principais beneficiários da Iniciativa de Cereais do Mar Negro temos China, Espanha e Turquia na liderança, estando no top 10 mais três Estados-membros, Itália, Holanda e Portugal. Os restantes países a serem beneficiados, são, de facto, países em vias de desenvolvimento, destacando-se, de entre eles, o Egipto, geografia em que a falta de cereais pode, realmente, tornar-se um “barril de pólvora” pela centralidade que assumem na dieta local. Aqui, é o pão que verdadeiramente importa.

É tudo isto que está em jogo enquanto em terras lusas se aumenta, infelizmente, a importação desta matéria-prima, devido à seca. A campanha de 2022/23 representa o pior ano de produção de sempre e Espanha, pelas mesmas razões, também irá necessitar de um volume record de importações: 25 milhões de toneladas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Enquanto tudo isto decorre, a Ucrânia quer um acordo sem a Rússia (será possível?) e a União Europeia aposta no reforço das Vias de Solidariedade, com um anúncio de investimento de 6,2 biliões de euros em infraestruturas de ligação entre a Polónia e a Ucrânia, e entre a Roménia e a Moldávia.

Nesta geopolítica cada vez mais complexa, em que a China e Índia podem, também, ter um papel relevante, desde logo no aumento da procura de cereais no mercado mundial, fragilizando ainda mais a Europa (e Portugal), a primeira reação foi o aumento de preços, a começar no trigo acima dos 10%, com a cevada e o milho também a ressentirem-se. Mas esta instabilidade que se reflete nos custos de vários fatores de produção – transportes, prémios, seguros – poderá  aumentar até que um acordo se concretize na prevista reunião entre os presidentes da Rússia e da Turquia em agosto.

O reforço da aposta nas Vias de Solidariedade, anunciado recentemente pelo Comissário Agrícola no final do Conselho AGRIFISH, teve como principal objetivo acalmar os mercados, mas a instabilidade e os riscos são enormes naquela região.

Felizmente para a Europa, os preços de outras commodities, como o gás e a energia, estão relativamente contidos, mas a tendência para os custos de cereais e oleaginosas é de crescimento e isso já é visível nos mercados de futuros, para final de 2023 e, em alguns casos, início de 2024.

O desconforto em Portugal começa a tornar-se evidente, com o preço destas matérias-primas em alta e o preço dos produtos finais que as utilizam em quebra, como acontece com o leite ou a carne de bovino. Da parte dos produtores intensifica-se a tendência de alienação dos seus efetivos para reduzir custos e da parte dos consumidores é de esperar uma retração, também por via da inflação, como, aliás, defende o Banco Central Europeu.

Aqui chegados, é urgente que os agricultores recebam as ajudas mais rapidamente, que a situação do PEPAC (Plano Estratégico para a Política Agrícola Comum) e das candidaturas ao Pedido Único não comprometam os apoios e seria desejável o prolongamento, para 2024, de medidas de apoio como o IVA ZERO nos alimentos para a alimentação humana e também na alimentação animal.  Caso contrário, o desconforto das commodities pode mesmo passar a ser um enorme incómodo.

A insegurança alimentar, como sabemos, não deixará de ter custos elevados. Transversais em toda a Sociedade.