Na semana passada, o Supremo Tribunal dos E.U.A, o tribunal constitucional norte-americano, como é habitual por esta altura do ano, publicou uma série de decisões sobre os casos que ouviu ao longo do ano jurídico que passou. Entre estas decisões contam-se a decisão sobre a inconstitucionalidade da affirmative action (discriminação positiva por etnia), utilizada por grande parte das melhores universidades do país na selecção dos estudantes que acolhem, a constitucionalidade de uma designer de websites para casamentos se recusar a prestar serviços a casais homossexuais e a inconstitucionalidade de uma das decisões mais mediáticas da presidência de Joe Biden, na qual este perdoou dez mil dólares em empréstimos a todos aqueles que haviam contraído empréstimos com o Estado federal para concluir os seus estudos universitários. O ano passado, pela mesma altura, o mesmo Supremo Tribunal havia declarado inconstitucional a protecção federal ao controverso direito à interrupção voluntária da gravidez, estabelecido em 1973 pelo caso Roe v. Wade, bem como afirmado o direito constitucional dos cidadãos a andar na rua (fora de casa) com uma arma.

Duas coisas importam, à partida, salientar para os menos versados em política constitucional norte-americana. Em primeiro lugar, em todas estas decisões, o Tribunal tomou uma decisão conservadora, isto é, uma decisão apoiada maioritariamente pelos eleitores do Partido Republicano. Em segundo lugar, em todas estas decisões, o Tribunal dividiu-se numa maioria 6-3, com os mesmos seis juízes a votar a favor em todas as decisões e os mesmos três vencidos a votar em direcção contrária. Não por coincidência, os seis juízes que votaram a favor de todas estas decisões conservadoras foram nomeados ao longo das últimas décadas por presidentes Republicanos, enquanto os três juízes vencidos (isto é, que votaram de forma mais progressista) foram todos nomeados durante as presidências de Democratas. Naturalmente, uma questão salta imediatamente à vista: será que estes juízes votaram segundo uma suposta interpretação iluminada, isenta, jurídica e técnica da Constituição ou votaram de acordo com as suas preferências políticas pessoais, que aliás foram uma componente central da sua nomeação por partidos políticos de direita ou de esquerda? Parece-me evidente que, em todos estes casos, as preferências políticas dos juízes foram anteriores a uma suposta interpretação legal. Isto é, primeiro escolheram as suas preferências políticas, depois ajustaram a jurisprudência e uma suposta filosofia constitucional às suas preferências.

Claro que é possível argumentar que todas as decisões constitucionais são, na verdade, decisões políticas e que parte da visão ideológica de cada um de nós debruça-se precisamente sobre as nossas crenças quanto ao que devem ser princípios fundamentais das nossas sociedades. No entanto, é inegável que a politização do Tribunal Constitucional norte-americano é extrema, especialmente quando comparado com outros tribunais constitucionais em democracias avançadas. A nomeação de cada juiz tornou-se um processo altamente mediático e politizado. Na verdade, a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal tornou-se um dos principais poderes do presidente, dados os mandatos vitalícios e a sua importância política. De resto, muitos eleitores dizem que essa é uma das principais razões para votarem em determinado candidato presidencial: que tipo de juízes vai o candidato a presidente nomear para o ST – conservadores ou progressistas? Esta é uma pergunta que, literalmente, orienta o voto de milhões de eleitores norte-americanos e cuja resposta determinou, por exemplo, que muitos cristãos conservadores votassem em Donald Trump, apesar do seu estilo de vida nada cristão. Muitos pensaram e admitiram-no com toda a clareza: Trump tem muitos defeitos, é certo, mas prometeu nomear juízes conservadores, ao contrário do que faria qualquer candidato democrata. Note-se que, nos EUA, a nomeação política de juízes vai muito para lá do tribunal constitucional. Note-se também que este tipo de raciocínio orienta o voto de eleitores e elites de ambas as cores ideológicas, sejam eles progressistas ou conservadores. Simplesmente, os movimentos conservadores foram mais eficazes, ajudados por alguma sorte, a definir uma estratégia clara e vencedora para tomar o poder judicial ao longos dos últimos 50 anos (precisamente desde a polémica decisão sobre o aborto Roe v. Wade). Para além de tudo isto, é possível definir quase exactamente como se posicionam ideologicamente os juízes numa ordem da esquerda para a direita, e prever como vão votar em cada caso. Ao contrário do que se passa entre nós e na maioria das democracias europeias, onde os juízes dos tribunais constitucionais são figuras importantes e frequentemente nomeadas politicamente, mas relativamente obscuras e longe da mente dos cidadãos comuns, milhões de eleitores norte-americanos sabem os nomes de vários juízes do tribunal constitucional. Nada disto é saudável numa democracia. Devem os juízes de um Tribunal Constitucional ser figuras tão conhecidas, politizadas e mediáticas como líderes partidários, ministros ou chefes de governo? Devem as nomeações para os tribunais, incluindo os Tribunais constitucionais, ser uma das principais questões e clivagens políticas de uma sociedade? Parece-me evidente que não.

A diferença entre uma regra Constitucional e uma simples lei deve ser uma diferença real e substancial. Uma regra constitucional debruça-se sobre valores absolutamente fundamentais da nossa sociedade e sobre as regras do jogo – do jogo político, económico e jurídico. Por isso mesmo, devem ser aceites por uma larga maioria da população e não apenas por uma maioria simples. E, como tal, são, em geral, regras duradouras. Nas palavras de Riker, a diferença entre uma questão constitucional e uma questão de políticas públicas é uma diferença de longevidade. Uma regra constitucional, precisamente por ser aceite por uma supermaioria dos participantes no jogo, é uma regra que não se muda com a mesma frequência com decidimos leis correntes e programas eleitorais. Geralmente, não mudamos anualmente os nossos valores fundamentais e nem mesmo a cada quatro anos.

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O Supremo Tribunal norte-americano, bem como os políticos que os nomeiam, num processo histórico que culminou na sua actual atrofia, arranjou um truque: como a revisão constitucional norte-americana é muito difícil, decidiu que uma nova forma de “rever” a Constituição é simplesmente fornecer novas interpretações de regras antigas. Tal não seria um problema se tais interpretações não fossem completamente díspares e variáveis, num jogo de palavras em que é possível deduzir quase tudo e o seu contrário de certas frases escritas há mais de dois séculos. Na verdade, esta nova forma de “emendar” tornou-se tão frequente que a Constituição norte-americana não é formalmente revista há 52 anos (em 1992, uma pequena revisão introduziu apenas uma regra sobre a compensação dos legisladores, numa alteração que não se pode considerar substantiva). Para quê o trabalho de reunir uma maioria de dois terços no Senado, juntamente com uma maioria de dois terços na Câmara dos Representantes e ainda uma maioria de 38 legislaturas estaduais (são necessárias as três condições), se podemos simplesmente nomear juízes que concordam politicamente connosco e, quando lá chegam, reinterpretam as palavras como querem? A consequência mais perversa de tudo isto é o grau extremo de flexibilidade e frequência com que se alteram questões supostamente constitucionais.

A maior perversidade, no entanto, consiste no facto deste truque tornar possível a conversão de todas as questões políticas em direitos constitucionais. Se é o Supremo Tribunal que toma decisões importantes e controversas da magnitude do aborto ou da discriminação étnica positiva – assuntos em que não existe um consenso social supermaioritário alargado sobre uma decisão a preto e branco – e se dá a força de direito constitucional a essas decisões, então o mais importante prémio do jogo político passa a ser tomar o poder judicial. Como o poder judicial não é directamente eleito pelos cidadãos e, neste caso, é vitalício, sem possibilidade de accountability e cuja substituição está à mercê da sorte ou azar de quando os juízes morrem ou se decidem reformar, isto significa uma atrofia antidemocrática grave da sociedade. Peso bem estas palavras. Na verdade, o problema fundamental é que se constitucionalizou a política. Isto é, justificar todas as opções políticas com a Constituição. Face a questões controversas e a divisões profundas da sociedade, muitas vezes divisões morais, a solução não é alcançar compromissos políticos aceites por uma maioria da população e/ou dos seus representantes, compromissos esses que se podem naturalmente alterar consoante muda a própria a sociedade. A solução é tentar tornar a nossa opinião num direito constitucional. Como as divisões sobre estas questões são muitas vezes profundas, isto gera um clima de guerra civil em que cada lado tem de conseguir tornar as suas opiniões as opiniões vencedoras, ou arriscamo-nos a viver num país com uma constituição completamente antitética aos nossos princípios fundamentais.

Mas se transformamos todos nossos desejos políticos em direitos constitucionais estamos, na verdade, a cometer um pecado que me parece capital: estamos a reduzir o espaço que deixamos à política e, por isso mesmo, a eliminar o espaço da democracia. Se tudo é um direito, não resta nada para a política debater e decidir. Assim, ao contrário de muitos outros progressistas norte-americanos, mas na linha de alguns professores de Direito norte-americanos como Ryan Doerfler e Samuel Moyn, não acredito que a solução mais desejável seja conseguir uma maioria no Supremo Tribunal e simplesmente reverter todas as interpretações legais que a actual maioria conservadora estabeleceu. Há muitas decisões políticas – na verdade, a maioria – que não são nem devem ser questões constitucionais, mas sim questões decididas democraticamente. A solução mais desejável é recuperar a decisão democrática das questões mais polémicas e politizadas sobre as quais regemos a nossa vida.