A morte de José Eduardo dos Santos não apanhou de surpresa quer a família quer os dirigentes do MPLA, partido a cuja história ficará, para o bem e para o mal, ligado para sempre. O problema de saúde era de gravidade severa e sabia-se que chegaria um momento em que a competência dos profissionais que o vinham acompanhando em Barcelona se revelaria impotente para prolongar a existência terrena. O corpo e a medicina têm limites.

Também não constitui novidade que a morte de José Eduardo dos Santos era o momento aguardado por alguns membros da família para um ajuste de contas com o atual Presidente do MPLA. Um processo que remonta à substituição de José Eduardo dos Santos por João Lourenço na chefia do Governo e do partido.

Como a História abundantemente documenta, os líderes autoritários – chamemos-lhes assim – apenas costumam sair de cena devido à morte natural ou provocada, embora também se registem casos em que decidem entregar o Poder, mas só depois de verem salvaguardadas todas as garantias no que concerne à vida, à liberdade e à manutenção do património próprio e familiar, quaisquer que tenham sido as circunstâncias que se prenderam com a respetiva aquisição. Uma espécie de amnistia que cobre todos os atos presidenciais, mesmo que a Constituição – como é o caso da angolana – não estipule esse procedimento e preveja que o Presidente da República, embora não sendo responsável pelos atos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes imprescritíveis e insuscetíveis de amnistia, responda pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções, perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato.

É provável que José Eduardo dos Santos tenha negociado com João Lourenço todo o processo de substituição e, como tal, desse por adquirido que o sistema não iria criar a imagem de luta contra a corrupção à custa da família do antigo líder. Porém, a forma como o novo Presidente e a justiça angolana trataram os dossiers de interesse nacional envolvendo vários filhos do anterior Presidente – José Filomeno, Isabel, Welwitschea, vulgarmente conhecida por Tchizé, e José Eduardo Paulino ou Coreon Dú – deixou claro que pretendiam sentar o nepotismo no banco dos réus.

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Ora, como a vingança se serve fria, era perfeitamente expectável o braço de ferro entre o Governo de Angola e estes familiares mal a morte de José Eduardo dos Santos fosse declarada. Uma luta em que a reconciliação serôdia do outrora Presidente com Ana Paula dos Santos, mãe de outros dois dos seus filhos, foi vista pelos restantes membros do clã como uma estratégia do Governo angolano. Uma tentativa de obter uma aliada recetiva à ideia de realizar o funeral em Angola. Um ato passível de aproveitamento político, uma vez que as eleições gerais estão mesmo à porta.

Face ao que resumidamente aqui foi exposto, não se afigura fácil o processo negocial e não apenas devido às afirmações públicas de Tchizé que chegou ao ponto de acusar as autoridades angolanas pelo assassinato do pai. Os negociadores enviados pelo MPLA a Barcelona sabem que o principal obstáculo reside em Isabel dos Santos. Alguém que mede cuidadosamente as palavras, mas não é minimamente modesta no que concerne ao caderno reivindicativo.

João Lourenço sabe bem que as reivindicações de Isabel não se quedam por aquilo que exigiu publicamente, embora a filha mais velha de José Eduardo dos Santos também esteja ciente de que o MPLA não poderá aceitar o funeral apenas depois das eleições. As negociações irão obrigar a cedências de ambas as partes. Umas assumidas publicamente. Outras combinadas no segredo dos gabinetes. Se para cumprir, o tempo o dirá.

Altura para reler o sermão de Santo António aos peixes. Sobretudo quando diz que ainda o “pobre defunto não comeu a terra e já o tem comido toda a terra”. Obviamente salvaguardando que se está perante um pobre defunto que nada tem de pobre. O tempo identificará os reais herdeiros de José Eduardo dos Santos.