A queda (aterragem de emergência) do Cessna no areal de São João da Caparica voltou a agitar os opinativos do costume, os “achistas” sem remissão, aqueles cuja opinião é lei, acham eles.

As colunas de opinião, as redes sociais, os comentários nas rádios e (sobretudo) nas televisões, encheram-se de gente que, num ápice, com uma sabedoria profunda de wikipedia, decretou que os pilotos – ora arguidos – são culpados de homicídio, premeditado ou não. Ora os pilotos ainda não foram julgados. Num Estado de Direito têm direito a sê-lo e, só depois, se condenados, deverão receber a sentença que a justiça considere devida – e justa.

Mas vivemos um tempo diferente. Quando pessoas influentes, os chamados “opinion makers”, por vezes com milhares de seguidores, iniciam um debate sobre as acções de determinados indivíduos, opinando de forma assertiva sobre a sua culpabilidade e apontando-lhes o dedo, é na praça pública, não no tribunal, que o julgamento se faz. E se isto nada tem a ver com a liberdade de expressão ou o direito à opinião, traves mestras das nossas sociedades ocidentais, tem tudo a ver com o direito à presunção de inocência, e com o direito a um julgamento imparcial, justo, respeitador das regras e dos princípios da justiça.

Ora o peso de certas opiniões, sejam mais ou menos informadas, e a natureza das redes sociais que as veiculam, pode resultar numa condenação pública sem que os visados sejam ouvidos; e se o chegam a ser, quando chegam, a sua defesa esbarra num muro de preconceitos, culpados já que foram declarados, condenados e sentenciados: réprobos sociais, votados ao ostracismo, vítimas para sempre da reprovação dos seus pares, indelevelmente manchados pela condenação pública e em público. Não, meus amigos, uma sociedade civilizada e respeitadora dos direitos individuais não tem o direito de julgar sem provas, de condenar sem julgamento, de sentenciar sem recurso, só porque as pessoas (os colunistas, etc.) “acham”, têm uma opinião e partilham-na (já foi uma anedota) e usam os recursos poderosos que a tecnologia lhes confere para expandir um espírito arrogante e na fronteira do autocrático.

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Se os pilotos de São João da Caparica, de cuja acção resultou a morte de dois inocentes, tiverem agido com dolo ou mesmo mera negligência; se o que fizeram for, comprovadamente, considerado um acto criminoso por um tribunal habilitado, na sequência de testemunhos de peritos, profissionais e especialistas de acidentes aéreos, então devem sofrer as consequências, nos termos da lei; da lei aprovada pelo Estado, através das suas instituições constitucionalmente legitimadas, e não da lei de Lynch. Porque é dela que se trata quando gente reputada, notória, com opinião reconhecida, opina, quase sempre sem conhecimento de causa profundo, baseando-se em pesquisas “googladas” à pressa, para o deleite da turba, que ulula em troca e exige sangue.

O cuidado de estudar os assuntos, de evitar opiniões definitivas antes da avaliação cuidada dos factos, quando em causa estão questões do foro da justiça, sempre me pareceu fundamental. Execro, confesso, quem, sem “nuances” nem decoro, viola os princípios básicos da democracia e do respeito dos direitos das pessoas, sobretudo o direito a um julgamento justo e conforme às regras da comunidade.

Ora o caso do avião da Caparica é apenas o mais recente, mas muitos outros me vêm à memória e podem ilustrar a minha opinião, também ela falível, reconheço. Casos como os de Pedrógão, em que se apontaram culpados de todo o jaez, da ministra aos bombeiros, passando pela protecção civil, o Siresp, os eucaliptos, antes de qualquer investigação séria e conclusiva; a operação Marquês, em que a responsabilidade pela denigração da justiça parece caber inteira à própria justiça, que já há muito (anos?) devia ter acusado ou arquivado o caso, contribuindo destarte para a aceitação pública da narrativa do ex-primeiro ministro; as viagens pagas a deputados e membros do governo, ainda que, nestes casos, o problema de moral política e ética da coisa pública a par da questão jurídica, talvez explique certas intervenções no espaço público, o que não significa opinar com ignorância ou condenar só porque sim (por se tratar de políticos). E tantos outros casos, que não chegariam muitos artigos como este…

Há alguns anos, a responsabilidade da opinião séria e informada (e ponderada ) era, quase inteira, dos jornalistas, dos políticos, dos colunistas, ou seja, de todos aqueles que detinham uma tribuna pública e meios de comunicar com o público em geral. Hoje, toda a gente pode ter esses meios através da Internet e quase toda a gente os usa, com maior ou menor responsabilidade: até, pasme-se, o Presidente do mais poderoso país do Mundo.

E se temos de usar responsavelmente esses meios, é porque eles não são só nossos, são uma parte do espaço público que todos ocupamos. E por isso, mais do que patéticos, muitos comentários e imagens que lemos e vemos no espaço público constituído pelo conjunto de redes sociais, blogs e Internet, são perigosos: eles caluniam, mesmo se inconscientemente, quando acusam (e condenam) sem julgamento; eles incitam ao linchamento público, se não físico, certamente de carácter, imagem e reputação; eles, tornando-se virais, replicados à velocidade da luz pelos internautas, multiplicam o contágio, que pode ser da mentira, calúnia ou manipulação, tornando inútil ou irrelevante qualquer refutação.

Tal como sucedia no tempo do inquisidor Torquemada, a quem nem o Papa se conseguiu opor, também agora de pouco vale às vítimas protestar contra a insídia brutal – o dano moral, o dano pessoal – causado por mentiras, comentários maldosos ou só estúpidos, pela imoralidade alheia; o mal está feito e, como as vítimas do inquisidor, também as da opinião desinformada ou simplesmente ilegítima veiculada pela Internet, gritam em vão a sua inocência, pois na voragem dos bites de nada serve o som virtuoso e atristado dos inocentes imolados no altar da curiosidade e maldade humanas. Uma vez mais, dirão que exagero. Alguns insultar-me-ão. Mas eu prometo que em lado algum – salvo a ultrapassagem de limites que nem consigo estabelecer – os barrarei ou impedirei de falar, criticar, dar opinião. Embora talvez fosse um salutar exercício de exorcização do Torquemada que há em cada um de nós, reflectirmos no assunto com elevação e bom senso. Pensar antes de condenar, dar o benefício da dúvida.

Em 2016 publiquei neste mesmo jornal um artigo designado “Os poderosos”. Nele lê-se: “(…) no meu espaço mando eu, (…)é meu, é privado, ninguém tem nada a ver com ele, e com as coisas (quiçá) boçais que por lá escreva, (…), só a mim dizem respeito, a mim e aos meus amigos”. Não é verdade: o que escrevo no “meu” espaço é tanto meu como dos meus “amigos” e dos milhares que virtualmente podem aceder ao que lá coloco. Se não o queremos, temos de escrever em circuito fechado, impedindo partilhas e a exposição do que escrevemos.

Os poderosos

As pessoas têm direitos e o uso indiscriminado e sem critério das redes sociais e da Internet não os deve violar. É a minha opinião, sujeita naturalmente a todo o contraditório.