E, ao vigésimo segundo dia do mês de Junho, Graça Freitas chamou os jornalistas a Alpiarça para encarreirar o povo rumo a um “Verão seguro”. E disse que “quando temos a pouca sorte de adoecer em férias ficamos um bocadinho desorganizados”. Porquê? “Porque estamos fora do nosso habitat natural, fora do nosso centro de saúde, fora do nosso hospital, fora do nosso médico”. E disse que “costuma dizer” que “a pior coisa que nos pode acontecer é adoecer em Agosto”. Porquê? “Também porque os nossos médicos não ‘tão’ lá, também ‘tão’ de férias noutro sítio qualquer.” E disse a um tal “dr. Pisco” (?) que não estava “a fazer nenhuma piada de mau gosto”, mas “a constatar um facto que Agosto não é um bom mês para se ter acidentes e doenças”.

De seguida, a dra. Graça desceu ao pormenor e puxou do conhecimento técnico: “Não sei se têm noção que no Verão há muitas toxinfecções alimentares colectivas.” Para que os culpados não ficassem impunes, a dra. Graça acusou: “O grande responsável é o bacalhau à Brás”. Porquê? Porque “aqueles grandes convívios, piqueniques, excursões, uma das coisas que é mais usada é o bacalhau à Brás, que está pré-feito desde manhã e depois aquece-se, não chega a aquecer à temperatura suficiente, e aquilo leva ovos, e aqueles ovos são uma cultura para as salmonelas do melhor que há.” Então a dra. Graça riu: “Até é pouco estimulante para investigar e para estudar: as toxinfecções alimentares são invariavelmente bacalhau à Brás e salmonelas”.

Em Alpiarça, a dra. Graça não se ficou por aqui. Ainda arranjou tempo para “cumprimentar o secretário de Estado adjunto e da Saúde, dr. Lacerda Sales, o meu secretário de Estado” (riso subalterno). E precisou: “Eu diria até o nosso secretário de Estado. Muito obrigado, sr. secretário de Estado, não só por hoje mas por todos estes anos em que temos trabalhado juntos, e nós devemos-lhe, de facto, muito.” Noutro momento vital da intervenção, a dra. Graça confessou ter “almoçado brilhantemente”, dádiva que “o sr. secretário de Estado” não sabia que perdera: “‘tava’ magnífico”. Aceitam-se apostas clandestinas sobre as iguarias em questão.

A dra. Graça é a responsável maior pela Direcção-geral da Saúde (um responsável menor foi uma vez às televisões proferir “póssamos” e “fáçamos”). Em escassos minutos, exibiu uma enorme desconfiança no SNS que tenta defender, abundante destrambelhamento e a espectacular sabujice. Nos dois anos e meio em que entrou na ribalta, nunca se desviou desses traços de carácter. A dra. Graça denuncia o excessivo optimismo do Princípio de Peter, segundo o qual cada indivíduo pode ser promovido até ao nível da sua incompetência: suspeito que a senhora já demonstraria inaptidão no estágio de uma sapataria, sem ofensa para os estagiários em sapatarias. A dra. Graça, em suma, daria pena, não fora o pormenor de ser um exemplo corriqueiro dos numerosos matraquilhos que o dr. Costa nomeia para dirigir o país, do “sr. secretário de Estado” à ministra, passando pelas resmas de bajuladores que ocupam lugares na Saúde e no resto. Sendo um caso de miséria, a dra. Graça é apenas um entre muitos. Miserável é o país. E pena damos nós.

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Seria injusto reduzir o cenário de catástrofe aos empregaditos assumidos do dr. Costa. Instado a comentar as declarações da dra. Graça, o presidente da República concordou e reforçou: “Cada qual fará o esforço para não estar doente, por si mesmo, e para não pressionar o cuidado da saúde dos outros”. Os portugueses que tencionavam adoecer no Verão ficaram desconsolados. Porém, não é novidade que o fundamental é salvar o SNS, que, na sua ignorância, uns pândegos haviam criado para salvar pessoas. Aliás, o próprio dr. Costa afirmou, numa quinta ou sexta-feira, que na segunda-feira seguinte – a que passou – boa parte dos problemas do SNS estariam resolvidos. Para ajudá-lo a resolver os problemas que sobraram, basta erradicar o bacalhau à Brás dos piqueniques. No limite, erradique-se a população. Estar doente é promover a instabilidade política e viver roça a traição à pátria. É assim, não é?

Habituámo-nos a imaginar que as “elites” políticas vêem os cidadãos como crianças de colo, ou débeis mentais. E é verdade: quando justificou os injustificáveis delírios da dra. Graça, o prof. Marcelo lembrou que, “na nossa juventude”, os pais, os amigos e os professores nos aconselhavam, pelo que, “portanto, os responsáveis políticos podem recordar evidências”.

Temos é de deixar de acreditar que as “elites” são diferentes de nós, e são “elites”. Não são. A sociedade infantilizada que vota nessa gente e a sustenta é aquela de onde essa gente emerge. E multidões infantis dificilmente produziriam estadistas adultos. Por regra, as “elites” são os cidadãos comuns, acrescidos de sorte, ambição, uns pozinhos de manha, vasta falta de escrúpulos e, na maioria, a inscrição no partido certo. Pensando melhor, as “elites” estão uns furos abaixo dos cidadãos comuns.

Não pretendo desculpar os titulares políticos e aparentados, ou esquecer o brutal desprezo que dedicam a quem deviam servir. Pretendo notar que, se a desumanidade deles é óbvia, a idiotia não é facultativa. E não é por serem maus, no sentido de malignos, que são maus no sentido de inaptos. Em geral, os espécimes que hoje mandam em nós acumulam, e ambas as características contribuem para a nossa desgraça. E para a nossa Graça. À semelhança do que sucede sempre que ouvimos a sra. directora, é possível achar-se que os espécimes que mandam nisto estão a gozar connosco. Mas é garantido que a realidade está a gozar com eles. E com todos, uma receita de bacalhau que talvez salve o SNS. Entregue a tontos, Portugal é que não tem salvação. E os tontos que o entregaram não se importam.