Neste país estagnado há quase 20 anos, em que o estado só não faliu porque teve uma ajuda externa, persiste-se na discussão da distribuição do que não é nosso. Acresce que esta pobreza de debate é encarada com normalidade pelo comum dos cidadãos.

Mas na verdade, conforme disse Margaret Thatcher, o dinheiro é das pessoas que pagam impostos e não do governo. Por conseguinte, quando este se apropria coercivamente do dinheiro das pessoas, deveria fazê-lo consciente do facto do dinheiro não ser seu, pelo que o montante retirado aos pagadores de impostos deveria ser limitado e não arbitrário.

Quanto à forma “limitada” com que o governo se serve dos pagadores de impostos para financiar as suas funções essenciais e não essenciais, não tem havido limites nem pudor nos últimos 20 anos, para não ir mais atrás. Não tem havido limites porque se os houvesse a despesa do estado e a carga fiscal não bateriam recordes sucessivos. Não tem havido pudor, porque mesmo após o programa de ajustamento da Troika, durante o qual houve um brutal aumento de impostos para corrigir uma situação gravemente deficitária, a prioridade não foi corrigir essa mesma brutalidade, mas sim devolver as condições anteriores dos recebedores de impostos. Neste contexto, sempre me pareceu que a palavra austeridade esteve mal aplicada. Na verdade, foi nas empresas e nas famílias delas dependentes e não no estado e seus dependentes que houve os maiores ajustes, isto é, a verdadeira austeridade. Algumas encolheram, outras claudicaram, outras sucumbiram em resultado da crise. Nenhuma teve, tem ou terá capacidade de, coercivamente, “ir buscar dinheiro onde ele está”. Isso é prerrogativa exclusiva do governo, facto que explica a sua voracidade e capacidade de sobrevivência.

No livro “Juntos somos quase um 31 – liberais à solta” escrevi um capítulo sobre a presença perniciosa do estado no processo de mercado. No subcapítulo, o “sócio amigo” criei um cenário fictício, mas bem representativo da realidade portuguesa, mostrando com algumas contas que alguém que queira criar um negócio arrisca-se a ver surripiado em impostos e contribuições em cerca de dois terços do valor criado. Desde o IRS, ao IVA, ao IRC até à Segurança social, os encargos pagos ao estado por quem produz são objetivamente um esbulho refinado com sobreposições sucessivas.

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Acresce a esse massacre fiscal, aquilo a que poderia chamar de “paga primeiro e depois protesta.”

Imagine o leitor que é visitado por um fiscal da autoridade tributária que inicia um processo de inspeção às suas contas ou da empresa. Poderemos pensar que o agente do fisco só tem como incentivos o cumprimento da lei.

Na verdade, não é bem assim.

A atual lei tributária prevê um bónus de desempenho. E o que é o desempenho? Ora, trata-se da correção da matéria coletável a favor do estado decorrente da ação inspetiva. O valor do bónus vai para uma espécie de fundo da autoridade tributária distrital, que ulteriormente o distribui tendo em conta, entre outros fatores, o desempenho dos (vendedores) inspetores.  Está assim criada uma espécie de empreendedorismo inspetivo, na qual a busca de receita fiscal tem uma relação direta (dinheiro) ou indireta (carreira do inspetor) com a riqueza do inspetor.

Mas o contribuinte pode fazer alguma coisa? Pode, sim. Se o relatório final da inspeção significar uma coleta adicional, o contribuinte (empresa ou particular) pode impugnar. Muito bem: “vamos para a justiça e veremos quem tem razão, mas para já fica tudo suspenso”. Certo? Não, errado.

Na verdade, é assim:

Para ir a tribunal, o pagador de impostos tem de pagar primeiro à outra parte (estado) ou prestar garantias, isto é, a lei aqui assume que ele é culpado por defeito. Se não quiser/puder pagar ou prestar garantia, o pagador de impostos é sujeito, sem sentença judicial, a um processo de penhora de ativos para fazer face à nova dívida encontrada pelo inspetor. Esse processo precede a própria impugnação, se ele sequer se der ao trabalho de o fazer porque às vezes nem isso faz devido aos custos de litigância. Acresce que, sem surpresa, verifica-se que o estado perde a grande maioria dos processos fiscais em tribunal!

Em resumo, temos uma máquina de extorsão que está frequentemente errada nas suas apreciações (perde muitas vezes em tribunal), mas que mantém a prerrogativa de inventar dívidas de pagadores de impostos e que, não satisfeita, criou um regime interno de incentivos aos seus (vendedores) inspetores. Acresce que, no início de 2019, esta vergonha estendeu-se à segurança social.

O inferno fiscal assume características cada vez mais totalitárias e indignas de um verdadeiro estado de direito. Novos protagonistas políticos em busca de afirmação eleitoral, ou velhos protagonistas em busca de redenção, têm nesta matéria muito terreno fértil para hastearem a bandeira dos pagadores de impostos. Vem aí o orçamento de estado de 2020 e uma boa oportunidade para o fazerem.