Bem sabemos que Donald Trump é um presidente original. Desta vez a originalidade foi expor a sua doutrina de política externa a pouco mais de um mês das eleições que não sabe se vai ganhar. Pode-se argumentar, provavelmente com alguma razão, que é precisamente esse o motivo: um discurso sobre política externa que apela ao eleitorado. Mesmo que a política externa nunca tenha feito nenhum presidente ganhar eleições.

Independentemente dos motivos, Donald Trump usou o discurso anual da Assembleia Geral das Nações Unidas para o fazer. Sozinho, por videoconferência, resumiu os quatro pontos fundamentais que orientaram a ação exterior dos Estados Unidos desde que se tornou presidente. Nenhum deles é novo, mas nunca tinham sido articulados desta forma antes.

O mundo tem um inimigo comum: a China. Neste aspeto, não poderia ter sido mais claro. O mundo tem de responsabilizar Pequim por ter deixado “o vírus chinês”, ou “a praga”, contaminar habitantes de 188 países do mundo. Proibiu voos domésticos, mas não se coibiu de deixar os seus cidadãos infetados voarem para onde lhes apetecesse. Se antes, a China, na visão de Trump, já era um inimigo dos Estados Unidos, a sua ação determinou que agora é um inimigo de todos. E (surpreendentemente) Washington oferece a sua liderança para travar a pandemia – incluindo a distribuição de vacinas a uma escala não muito percetível, mas que ultrapassa os Estados Unidos da América. Mas (subentende-se) essa liderança vem com um preço: o alinhamento contra Pequim e os seus intentos expansionistas.

Paz pela força. Trump acredita que os EUA estão a “cumprir o seu destino de peacemakers”. Mas é uma “paz através da força”. Este é ponto central da sua doutrina. Umas forças armadas muito poderosas, nas quais foram investidos 2,5 mil biliões de dólares nos últimos quatro anos e que são usadas cada vez que os Estados Unidos pretendem alterar a perceção dos inimigos da sua posição quanto a assuntos internacionais. Preferivelmente sem ser em cenário de guerra.

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Por falar nisso, não se iniciou qualquer guerra desde que Trump foi eleito – o que é uma novidade, tendo em conta as últimas administrações. Mas usou-se a força para mandar à Síria a mensagem que não se passam linhas vermelhas (bombardeamentos a alvos militares), caso contrário, o regime será punido; deslocaram-se meios navais massivos para junto da Península Coreana para dissuadir Kim Jong-un de prosseguir o seu programa nuclear; usou-se a MOAB, a mãe de todas as bombas, para destruir posições do Estado Islâmico no Afeganistão, não só com um intuito imediato, o de destruir um reduto terrorista, mas com a intenção de mostrar ao mundo a mais poderosa bomba não nuclear do arsenal norte-americano; utilizou-se a força cirurgicamente para assassinar o líder do Corpo Especial da Guarda Revolucionária do Irão, alegadamente responsável pelo planeamento de um conjunto de ataques contra alvos e cidadãos norte-americanos.

Trump construiu umas forças armadas tecnologicamente avançadas, numericamente robustas e em permanente prontidão. E usa-as sem hesitação quando acha adequado – e não obrigatoriamente como último recurso. E é esta a característica fulcral da sua doutrina: o poder militar usa-se quando necessário para que o mundo saiba que os EUA são uma potência disposta, a qualquer momento, a defender o seu interesse nacional e para levar os adversários a fazer os que os Estados Unidos desejam. É a esta estratégia que Trump atribui aos acordos de paz entre Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, aos quais, reafirma, se seguirão outros pactos de amizade no Médio Oriente.

A esta doutrina chama-se dissuasão ofensiva. Não tem nada de novo. Mas há algumas décadas que estava esquecida, escondida pelos preceitos das ordem liberal internacional, onde o uso da força não é a exceção, mas tem características muito diferentes.

O fim da ordem liberal. O que dissuade os Estados não são “as mesmas velhas e cansadas vozes que propuseram soluções falhadas e prosseguiram ambições globais à custa do povo americano”. Porque, segundo Trump, “só quando cuidamos dos nossos próprios cidadãos podemos encontrar as verdadeiras bases para a cooperação”. Por outras palavras, para esta administração, a cooperação não acabou. Transformou-se. As grandes organizações multilaterais estão cada vez mais vazias, substituídas por relações bilaterais fortes – veja-se, mais uma vez, o Médio Oriente –, cooperação regional onde os Estados Unidos entendem que têm interesses a defender. Como a relação cada vez mais estreita dos países do Quad (EUA, Japão, Índia e Austrália, aos quais se juntaram mais recentemente a Coreia do Sul, a Nova Zelândia e o Vietname). Esta relação tem várias vertentes e uma razão principal, escusado será dizer: conter a China. Nada impede que outras alianças e parcerias se forjem no futuro – a NATO recebeu elogios do presidente pela disposição europeia para o burden sharing, que permitiu uma maior eficácia da organização. Mas as alianças de amanhã, caso a era Trump continue (e mesmo que não continue ainda que em moldes diferentes) reorientaram-se dos valores para os interesses, do Ocidente para o Oriente. E tem de ser assim quando o mundo muda.

Uma nova liderança. O último ponto é o mais ambíguo. Trump oferece uma espécie de nova liderança internacional dos Estados Unidos – no combate à pandemia e à reconstrução económica –, mas não especifica os termos. Voltamos ao princípio; os critérios da ordem Trump são dois: estados soberanistas e desavindos com a China. Se Trump ganhar as eleições, veremos o resultado. Se não ganhar, veremos como Biden adapta o legado de Obama a um mundo que seria quase irreconhecível há uma década atrás.