Tornou-se um lugar comum afirmar que os cidadãos, especialmente as pessoas com doença, estão no centro do sistema de prestação de cuidados. A isto vem normalmente associada a intenção de que as decisões em saúde e apoio social sejam primordialmente guiadas pelos seus interesses.

A verdade é que, no meio de tantos discursos, a prática vem demonstrando que, não raras vezes, as pessoas com doença ficam sozinhas nesse centro. Os profissionais e os decisores políticos caem por vezes no erro de, em vez de escutar os anseios e preocupações destas pessoas, dialogando francamente com elas, julgarem que a sua preocupação com elas é chave hermenêutica suficiente para os compreender. Põe-se aqui, desde logo, uma questão: que autonomia e da participação dos doentes no seu processo de tratamento?

Sendo este desafio transversal aos profissionais de saúde, cabe então perguntar: o que esperam os doentes da equipa que lhe presta cuidados? Certamente que esperam disponibilidade e tempo; humanização e solidariedade; eficiência e proximidade. Contam não apenas com o tratamento da doença, mas também com a promoção da saúde, de forma holística, levando à prática o conceito de “uma só saúde” enunciado pela Organização Mundial de Saúde.

Tal implica dos profissionais uma atitude excêntrica, no sentido de sair dos seus círculos de interesses pessoais, que, podendo ser legítimos, podem não coincidir com o superior interesse dos cidadãos. Para os doentes, não são tão importantes os títulos profissionais, mas mais o serviço prestado: tal constitui um desafio para repensar modelos de organização das equipas (que se pretendem interdisciplinares), bem como modalidades de remuneração e valorização profissional.

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Neste contexto, qual deve ser a atitude que norteia a intervenção farmacêutica? Os doentes gostariam, certamente, que os farmacêuticos estivessem ao lado dos outros profissionais, das famílias e cuidadores, dos centros de referência. Que fossem agentes de inovação – o que esperam as escolas de ciências farmacêuticas portuguesas para reorientar o seu trabalho investigativo no sentido clínico?

Pelo atrás exposto, torna-se imperioso o acesso aos dados em saúde (aliás, em linha com a tendência europeia). Não havendo barreiras tecnológicas que a tal obstem, apenas factores de decisão política podem justificar a dificuldade sentida pelos farmacêuticos neste âmbito. Obrigados que estão, por Lei, a sigilo profissional, não pode ser invocada a protecção de dados como barreira a este acesso – não apenas para trocar informações com outros profissionais e com os doentes, mas também como ferramenta de avaliação de processos, para melhorar os resultados em saúde.

Outro aspecto essencial passa por uma uniformização da prática farmacêutica, nos diversos pontos do sistema. Tal implica a definição de protocolos entre entidades representativas dos farmacêuticos e associações de pessoas com doença, de modo a possibilitar uma referenciação estruturada no sistema de saúde e não voluntarista, como até agora; o que implica a necessidade de validar processos e metodologias, aspecto em que os farmacêuticos da área regulamentar terão certamente importância. Podemos também apontar a necessidade de garantir a articulação com o médico assistente e restante equipa, não “se possível” e sim “se necessário”. Deve pensar-se na concepção de soluções “chave na mão”, com o desenvolvimento de cuidados farmacêuticos de precisão, altamente personalizados (em que o trabalho dos farmacêuticos analistas clínicos na área dos biomarcadores tenderá a ser cada vez mais relevante). Impõe-se ainda um papel mais activo no alívio da carga medicamentosa, nomeadamente através da desprescrição (que é muitas vezes mais importante do que a prescrição). E coloca-se, de forma transversal, o desafio da comunicação.

No final destas considerações, o que fica de relevante? Devemos estar conscientes de que há direitos, mas também deveres; e que há dificuldades a serem ultrapassadas. Mas estas dificuldades não devem inibir-nos de assumir metas realistas e exequíveis, nomeadamente no aumento da literacia em saúde e da prevenção da doença, em que os farmacêuticos comunitários deverão ser muito mais interventivos. Por outro lado, é necessário avançar de forma decidida com a dispensa de medicamentos em proximidade a nível nacional, de forma harmonizada, acabando com os casuísmos locais que determinam iniquidades no acesso e possíveis riscos na segurança do circuito; e potenciando a relação entre farmacêuticos hospitalares, comunitários e dos cuidados de saúde primários, tornando-os verdadeiramente gestores integrados das tecnologias de saúde.

Em conclusão, deixo como bússola a metodologia PCR. Não de polymerase chain reaction, mas de propósito, confiança, resultado. Propósito comum de integração no sistema. Confiança de todos os parceiros envolvidos na prestação de cuidados. Resultado: uma saúde mais sustentável para os cidadãos.