As pessoas têm medo de quem parece alucinado na Igreja. Tudo deve ser moderado e a religião não é excepção. Que se acredite vagamente em algumas coisas invisíveis, está certo; mas cuidado com os arrebatamentos. A nossa imaginação popular consegue atingir promessas cumpridas de joelhos em Fátima, mas até isso tolera com dificuldade crescente. Estimo que gente cantando de mãos levantadas e olhos fechados possa já pontuar na escala da histeria colectiva. E vindo daqui, o ambiente religioso a que pertenço corre o risco de surgir na lista de patologias enumeradas pela Organização Mundial de Saúde. Talvez qualquer dia vos escreva devidamente internado.

E a verdade é que, sob tanta pressão, até alguns cristãos evangélicos sucumbem. Eu próprio, crescido em Igrejas Baptistas, geralmente tidas por mais sóbrias, também já olhei para os meus irmãos mais agitados com suspeita. Alguém com apreço por sensatez pública entra num serviço de culto destes, mais exuberante, e vê todas as bandeiras vermelhas erguerem-se: há gente a chorar, há gente até a gritar, há gente a abrir a carteira e, aqui e ali, há gente a cair no chão. O pacote da insanidade parece vir completo e os mais prudentes quererão ficar longe, não vá alguém dar-nos a volta mesmo. Uma Igreja Evangélica mais intensa assim é o pesadelo de quem quer manter alguma mão na sua vida—só gente muito desgovernada pode encher lugares destes.

Mesmo que não o afirmemos em frente ao espelho, acalentamos a esperança de pertencer a um grupo diferente. Connosco a história terá de ser outra: ninguém nos engana, ninguém manda em nós, ninguém nos diz o que fazer. Já quase vivemos em piloto automático, de tão orientados que estamos. Governamo-nos. Não é que sejamos auto-suficientes, mas vamos sendo o suficiente para nós próprios. Somos unidades praticamente autónomas e por isso topamos desgovernados à légua. Não temos necessidades extraordinárias porque as vamos suprindo nós mesmos (o que não deixa de ser extraordinário!). Pedir é para quem precisa e não precisamos assim tanto.

Se é verdade que nunca me considerei auto-suficiente, também é facto que não olhava para mim como um desgovernado. Mas Deus tem cortado as unhas das minhas ilusões. Aconteceu apanhar-me tão desgovernado que conclui que quase quarenta anos a cultivar-me como moderadamente governado de pouco me serviu. Dei-me ao luxo de pedir o irrazoável quando décadas do que julgava razoável não me impediram de me sentir no lixo. Voltar a algum tipo de normalidade parecia-me um milagre e foi esse milagre mesmo que pedi a Deus. Chorei, esbracejei, li sobre cordas amarradas a vigas de madeira resistentes que suportassem o peso de um corpo. Estava num estado tão ridículo como os desesperados nas Igrejas Evangélicas que prometem prodígios.

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E apercebi-me de uma miséria particular: pior do que pedinchar milagres é nem precisar deles. A experiência mais absurda, bem vistas as coisas, não era andar à rasca, homem feito que era. A experiência mais absurda era quase quatro décadas vividas na presunção de me ir governando. Ao estar eu em crise, estava um sistema completo, um parlamento de vozes dentro de mim invocando desesperadamente um estado de emergência que salvasse uma sociedade inteira. Cheguei à conclusão de que, apesar de ter sido educado a duvidar de Impérios, agora tinha de acreditar forçosamente num por conta da sua queda. Esse Império era eu e a anarquia que o ameaçava prometia uma competência que nenhum dos aprumados funcionários da paz que até então julgava perene mostrava.

Calculo que haja uma censura a quem pede milagres que provenha de um certo bom senso: afinal, parece irresponsável esperar que a solução dos nossos problemas seja externa ao que fazemos por eles. Mas por trás dessa responsabilidade, pode haver uma arrogância. Desde quando é que resolvemos seriamente uma coisa sem precisarmos de intervenções externas? Nesse sentido, assumir a nossa incapacidade de providenciar soluções às pessoas a quem melhor deveríamos conhecer as necessidades, nós mesmos, pode ser a melhor ajuda que lhes damos. Eu sair da frente para me ajudar pode ser o melhor que faço por mim—eis uma definição de milagre que me é querida.

Hoje quando vou à Igreja só peço e celebro coisas típicas de desgovernados mesmo. Pedincho milagres porque sem eles não me consigo levantar da cama na manhã seguinte. Celebro quedas de Impérios enquanto espero pelo único que se aguentará e que, providencialmente, servirá todos os desgovernados como eu. Não sei se pareço muito alucinado mas, se for esse o caso, acho que não me importo muito. Como vos disse, não confio assim tanto em gente que não desespera por visões alternativas. Vejo um futuro e juro que não me parece uma alucinação: lá ao fundo vem um tempo a chegar em que ser saudável nos fará levantar os braços de olhos fechados. Sem ponta de vergonha.