O ano passado, mais ou menos por esta altura, o Papa Francisco declarou Venerável o homem que descobriu a causa da Síndrome de Down, o geneticista francês Jérôme Lejeune (1926–1994). Isto significa que se provou que Lejeune viveu de forma extraordinária as virtudes teologais da fé, esperança e caridade, entre outras virtudes cardinais, como a justiça e a fortaleza. Só por aqui dá para ver como é caricata a ideia de que há um conflito entre ciência e religião. Haveria, se a ciência não fosse bem feita ou a religião bem vivida, mas tal não foi o caso com Lejeune. Na verdade, foi o seu respeito absoluto pela vida humana que levou a comunidade científica a ostracizá-lo, ao ponto de Lejeune, que chegou a ser contemplado com o Prémio William Allan, uma espécie de Nobel da genética, ver muitos dos seus projectos perder progressivamente o financiamento público. A dita comunidade científica fica muito entusiasmada com os avanços médicos e tecnológicos, mas parece não tolerar uma boa lição de moral, como se quem está na ciência também não tivesse que escolher entre o certo e o errado ou, para o tópico aqui em questão, a vida e a morte.

Não foi só de genética que falou Lejeune no seu discurso ao receber o Prémio mencionado, mas também sobre o que fazer quando o médico geneticista detecta no cariótipo do feto, não dois, mas três exemplares do cromossoma 21 (daí o nome trissomia 21 também aplicado à Síndrome de Down). Estamos em finais dos anos 60, quando se começam a dar os primeiros passos numa legislação a favor do aborto, não só na Europa como nos EUA. Sabemos quão radical esta legislação se tornou (nalgumas partes dos EUA pode-se abortar praticamente até ao nascimento), mas naquela altura o que se falava era, “tão só”, de contemplar na lei os casos em que havia perigo de morte para a mulher, probabilidade do nascituro vir a sofrer de doença grave ou malformação genética ou quando a gravidez resultasse de uma violação. Crianças com Síndrome de Down estavam, por isso, em sério risco de começar a ser eliminadas antes do nascimento. Lejeune foi uma das raras figuras a bater-se contra este tipo de legislação, e fê-lo até ao fim da vida. Custou-lhe a carreira promissora, muito provavelmente o prémio Nobel e ainda algumas amizades. Contudo, manteve o combate e permaneceu fiel à fé. É caso para perguntar: o que é o homem sem fibra moral? Pouco mais que a besta, diria eu.

De há uns anos a esta parte que se assiste a uma verdadeira cruzada eugénica contra a Síndrome de Down. Na verdade, contra a maioria das anomalias genéticas compatíveis com a vida, desde que estas começaram a poder ser diagnosticadas durante a gravidez. De tão disseminada que é a propaganda, poucos são os países que escapam a esta ideologia, mascarada num direito à escolha. Lejeune foi um dos pioneiros do diagnóstico pré-natal, mas foi com enorme dor que viu a sua técnica ser usada para outros fins que não a cura da doença. De forma irónica mas contundente, perante uma plateia cheia de colegas médicos, afirmou que deveria existir um “National Institute of Death”, onde os seus profissionais teriam o poder de decidir, com base nas características dos mais aptos, quem tinha direito a viver e quem não tinha. A lógica era simples: porque não institucionalizar o que na prática já estava a acontecer?

À primeira vista, a ideia de combater uma anomalia genética parece algo positivo. Acontece que o alvo está a ser completamente ao lado: em vez de se atirar à doença atira-se ao doente. Isto é tudo menos medicina hipocrática. Neste cenário, a Islândia é o exemplo mais extremo. Na viragem do século, este país da Escandinávia começou a oferecer às mulheres grávidas um rastreio à Síndrome de Down, ao qual 85% das mulheres adere. Dentro deste valor, praticamente 100% das que confirmam a existência de trissomia 21 optam por abortar. Resultado: nasce uma criança com Síndrome de Down por ano na Islândia, quando deveriam nascer cerca de oito (a incidência da doença é de 1 caso em cada 700 nascimentos). O governo Islandês continua a dizer que o rastreio é só para informar, mas acaba indirectamente por influenciar a decisão, pelos vistos numa só direção. O impacto na vida das famílias que têm, de facto, crianças com trissomia 21 ao seu cuidado, é brutal. Basta pensar na realidade que é em não existir no raio de não sei quantos quilómetros alguém com quem partilhar os desafios e dificuldades, mas também as alegrias e afectos, que as crianças com Síndrome de Down proporcionam. Para além do mais, há o efeito de estranhamento que se vai instalando na população em relação às pessoas com Síndrome de Down. “Só vêm a síndrome, não me vêem a mim”, partilhou Halldora Jonsdottir num documentário da CBS sobre a Islândia.

Voltando a Lejeune. Este médico geneticista acompanhou cerca de seis mil pacientes com Síndrome de Down e sabia de memória o nome de cerca de dois mil. Dos pacientes que eram capazes de expressar as suas emoções, não conheceu um só que considerasse a sua vida miserável, mesmo quando estes pacientes reconheciam as suas limitações. Há que admiti-lo: na maioria dos casos em que os pais decidem abortar uma criança com trissomia 21, é para evitar o seu próprio sofrimento, não o do filho. Não é de espantar, pois é preciso maturidade humana e espiritual para olhar para um filho com Síndrome de Down como uma bênção e não uma maldição. Esta consciência das coisas pode vir só muitos anos mais tarde, mas acaba por chegar. A vida, ainda que trágica, traz sempre algo de bom e de belo a quem se deixa humanizar. Lejeune veio ensinar-nos que os pais de crianças com Síndrome de Down podem ter perdido em comodidade, mas ganharam 100 vezes mais em humanidade. É por isso que precisamos dele.

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