Ou tinha falado mais cedo ou então falava daqui a muito tempo. Agora é que não.

Devia ter-se demitido quando se sentiu pressionado. Denunciar agora essas pressões é fazer agitação política.

Está isolado e a ser instrumentalizado.

Estes são alguns dos argumentos usados para condenar as declarações do antigo governador do Banco de Portugal ao jornalista Luís Rosa. Não interessa que os factos relatados sejam verdadeiros ou falsos, graves ou irrelevantes. O que conta é que revelá-los pode prejudicar os autores desses factos. Sim, não interessa que o país possa ter sido prejudicado, interessa em que medida revelar esses factos prejudica António Costa.

Assim, e pegando num dos casos relatados por Carlos Costa, o do processo de “venda/anúncio de resolução/venda” do BANIF (caso não tão mediatizado quanto o de Isabel dos Santos mas na minha opinião o mais revelador sobre a forma como António Costa exerce e entende o poder) não interessa o que o ex-Governador conta sobre termos tido o Banco de Portugal a trabalhar num plano para o BANIF e o Governo noutro, mas sim que revelar isso prejudica António Costa e desse modo o PS e portanto favorece a direita.

Tudo isto já vimos e tudo isto nos conduz a um problema estrutural do regime: a impunidade do PS. Nenhum outro partido protagonizou em Portugal uma tal sucessão de casos excepcionais na sua gravidade. Tenho aliás a convicção de que nenhum outro partido teria resistido. Mas o PS não só sobrevive como, passado o susto inicial, imediatamente recupera e passa ao ataque: as denúncias são rotuladas como cabalas e as vítimas transformam-se em títeres manipulados por forças obscuras – de direita, obviamente – ou por desejos mesquinhos. Os factos, esses, passam para segundo plano.

Foi assim em 1996, quando o dirigente socialista Rui Mateus expôs como o PS, as campanhas presidenciais de Mário Soares e um grupo de comunicação afecto aos socialistas se tinham financiado ilegalmente com dinheiro proveniente de Macau e não só. O livro de Rui Mateus Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido desapareceu das livrarias e nunca mais foi reeditado e o próprio Rui Mateus, logo rotulado como traidor, desapareceu.

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Foi também assim quando em 2003 o então Procurador-geral da República, José Souto Moura, acusou o deputado do Partido Socialista, Paulo Pedroso, no âmbito do processo Casa Pia. De imediato o PS passou a apresentar-se como vítima de uma cabala. Os mais de 100 rapazes e raparigas que se estima terem sido vítimas de abusos passaram rapidamente para segundo plano, com os incidentes processuais a dominarem as discussões. (Entre os vários incidentes processuais houve um que teve por base a inclusão pelo Ministério Público de cartas anónimas no processo. Era então tese dominante em Portugal que tal inclusão violava o Código do Processo Penal e que estas cartas deviam ter o caixote do lixo como destino. Face ao entusiasmo presente com as denúncias anónimas no caso dos abusos praticados por sacerdotes católicos presumo que a jurisprudência do caixote do lixo passou à História.)

Catalina Pestana, que fora nomeada provedora para recuperar a Casa Pia no meio de tal tormenta, passou de personalidade admirada e respeitada a pouco menos que odiosa porque nunca deixou de denunciar o papel desempenhado nesses abusos ou no seu encobrimento por personalidades com poder político nomeadamente da área socialista. E o Procurador-geral da República que chegou a ser ameaçado de demissão (por causa das declarações de uma sua assessora de imprensa!) acabou isolado e denegrido.

Foi assim quando em 2005 o nome de José Sócrates surge no que havia de ser o caso Freeport: era uma cabala. Foi assim em 2007 quando se percebem os contornos rocambolescos da licenciatura de José Sócrates: foi uma urdidura. Foi assim em 2010 quando a Operação Face Oculta expôs um esquema de favorecimentos em concursos a troco de contrapartidas: uma aleivosia. Foi assim em 2012 quando Sócrates aparece no meio de uma investigação a esquemas de lavagem de dinheiro, a chamada Operação Monte Branco: era uma canalhice. Foi assim em 2014 quando a Operação Marquês revela que José Sócrates enquanto primeiro-ministro teria recebido mais de 30 milhões de euros por favorecimento: era uma conspiração.

Dir-se-á que os factos revelados por Carlos Costa são doutra natureza. Obviamente que sim. Mas há algo que se mantém invariável: a reacção dos socialistas perante os factos que dão conta da impunidade com que o PS governa. Reagir atacando, nunca reflectir, controlar danos e agir como se nada tivesse acontecido: eis o manual de sobrevivência do PS.

O PS tem um controlo crescente numa sociedade em que todos são cada vez mais dependentes do Estado e em que para evitar causar agitação política ou ser acusado de não falar no momento certo, muitos optam ou são convidados a optar pelo silêncio. Por exemplo, porque vai Andy Brown sair da administração da GALP? Será que a sua posição crítica perante a opção do Governo de permitir o regresso ao mercado regulado como forma de iludir o aumento dos preços do gás teve algo a ver com essa decisão? Porque se calou ou mandaram calar Nuno Ribeiro da Silva? Provavelmente por ter explicado que não há forma de contornar os aumentos da energia. Porque não foi Francisco Assis apresentar o livro de Luís Rosa como estava anunciado? E porque dizem os banqueiros que não vão lê-lo? Entre outras razões porque não existe um manual para criticar o PS de forma correcta. Logo o silêncio tornou-se dominante.

Ps. A viagem de Lula da Silva a Portugal reforçou a partidarização das relações Portugal-Brasil. O primeiro-ministro recebeu Lula em São Bento mas comportou-se como se estivesse na sede do PS. Pelo passado de Lula e pelas ligações de José Sócrates a alguns dos protagonistas do lulismo esperava-se uma maior contenção do PS perante o recém-eleito presidente do Brasil. Mas não só não foi isso que aconteceu como António Costa transformou São Bento no Largo do Rato e deu as boas vinda a Lula em tom de comício: “o mundo tinha muitas saudades do Brasil, precisava que o Brasil regressasse à defesa dos valores da democracia, ao combate às alterações climáticas, à defesa do ambiente, à proteção e defesa da cultura. Portugal tinha muitas saudades do Brasil e eu tinha muitas saudades do Presidente Lula. Há que recuperar o tempo que perdemos, e temos muito a fazer em conjunto”. Em resumo, para António Costa Portugal tem relações não com o Brasil mas sim com o PT. Um dia alguém nos vai lembrar isto.