Passado um tempo em que o país conseguiu assegurar que, praticamente, todos os docentes do ensino básico e secundário, jardins de infância incluídos, tivessem formação pedagógica, voltámos à situação que se vivia nos anos oitenta do século passado, quando milhares de docentes apenas possuíam habilitação académica, mas não tinham formação pedagógica.

Claro que nos podemos interrogar sobre as razões desta situação bizarra e sobre quem recai a culpa do que atualmente se passa. A falta de planeamento é, sem dúvida, a razão primeira, o que remete para sucessivos governos e diversos responsáveis da pasta. Como os números eram conhecidos, entravam pouco estudantes nos cursos de ensino, logo iam faltar nos anos subsequentes, os professores estavam a envelhecer, o quadro não se estava a renovar e as reformas estavam a acelerar, era certo que se estava a caminhar para a situação atual. Ninguém quis ou pôde pensar, planear e agir e hoje estamos confrontados com um recuo significativo se comparado com tempos recentes.

Mas mais importante do que lamentações e protestos é pensar em soluções e estas nem são novas, nem difíceis de implementar, basta usar a experiência e os meios disponíveis, e são muitos. Admito que o ministério já esteja a planear como resolver a questão da formação pedagógica dos novos docentes recrutados sem essa formação, mas como não são conhecidos quaisquer programas, atrevo-me a sugerir uma possibilidade, com base na experiência de muitos anos como coordenador de um programa de profissionalização em exercício.

O país possui uma vasta e diversificada rede de universidades e escolas superiores de educação com capacidade para montarem rapidamente um programa de formação adequado às circunstâncias, ou seja, ministrando formação em áreas consideradas básicas, como desenvolvimento curricular, administração escolar, psicologia da educação, gestão de turma e metodologias de ensino específicas das várias áreas. A Universidade Aberta também pode e deve contribuir para um programa com estes objetivos, tanto mais que também já o fez no passado.

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Apesar de o governo ter criado recentemente uma esdrúxula possibilidade de quem já exerce sem habilitação pedagógica poder ser avaliado através da discussão de um relatório, coisa absurda e ridícula, nem vou tomar isso em consideração por achar que ninguém de bom senso aceitará uma coisa destas, e prefiro admitir que o docente pode, como já acontecia e com sucesso, ter um primeiro ano de formação teórica e um segundo de prática pedagógica acompanhada.

Como qualquer pessoa ligada à formação de professores em qualquer parte do mundo sabe, as competências práticas não se adquirem por geração espontânea, nem com a prática individual, é necessário um enquadramento por pares formados e treinados e um período de prática supervisionada para que se possam corrigir erros e omissões, atitudes, formas de comunicar, métodos de relacionamento, controlo dos grupos, utilização criativa de tecnologia, enfim, toda a infinidade de pequenos pormenores que fazem do exercício do trabalho docente de qualidade uma tarefa complexa.

Obviamente, que esta é apenas a parte formativa, que não resolve todos os problemas que afetam a classe docente e que a têm transformado em algo a anos-luz do que se espera de uma atividade fundamental para a formação das crianças e jovens. Ser professor nos dias de hoje é um desafio de sobrevivência, ao quotidiano, à burocracia, à imagem diminuída que a sociedade lhe associa, às baixas remunerações e aos comportamentos desviantes dos alunos, que se tornaram rotina.

Os professores são, constantemente, sujeitos ao contraditório de quem nada percebe de pedagogia, mas se julga mais competente do que quem estudou para exercer a profissão, esmagados por tarefas burocráticas rotineiras e inúteis, a terem que dar resposta a tudo o que hoje se pede à escola, como se esta fosse capaz de acudir a todas as demandas e a todos os problemas que nela desaguam.

No futuro, não basta resolver o problema da falta de docentes sem habilitação pedagógica, é necessário mudar profundamente os parâmetros do exercício profissional, da autonomia das escolas, do modelo de recrutamento. O “professor ambulante”, marca de água do sistema de ensino português, não é uma inevitabilidade, é o resultado de um modelo de recrutamento que não faz qualquer sentido, ao tomar o país como área de trabalho de qualquer docente que acede à profissão e a nota académica como critério fundamental de seriação.

Como é possível que um profissional de qualquer área fique amarrado durante toda a sua vida a uma classificação de fim de curso, obtida em condições muito específicas? Até os crimes prescrevem, mas na colocação de professores, a classificação é o alfa e ómega do posicionamento em qualquer lista graduada, que todos os anos dita a sorte da cada um que se apresenta a concurso.

Qual currículo, qual competência, qual empenhamento, qual dinamismo, o que interessa é a “notinha” que rasoira tudo em volta e que de tão incensada gera o fenómeno admirável e por todos incompreendido: o docente que é de Bragança e vai dar aulas para Faro ou vice-versa.

Dir-se-á que o mesmo acontece com outras categorias profissionais, é verdade, mas as condições de exercício da docência tornam muito mais gravosa esta itinerância, agora agravada pelo elevado custo da habitação, que revelou uma realidade que permanecia um pouco escondida, muitos professores não ganham para pagar a renda da casa.

É tempo de regionalizar a colocação dos professores, assegurar o primado da proximidade no recrutamento, dar relevância ao currículo e à experiência comprovada, salvaguardar que se tomam em conta critérios como a dedicação, a disponibilidade e o empenho na atividade profissional e implementar um sistema de avaliação funcional que ajude todos a crescer profissionalmente.

Sem professores com formação adequada e dedicados não pode haver ensino de qualidade, nem resultados escolares positivos. A escola é um setor onde a tecnologia tem de ganhar muito mais espaço do que hoje lhe é atribuído, mas onde a relação professor-aluno continua a ser insubstituível, já não para transmitir conhecimento, mas para mediar as aprendizagens, apontar caminhos, ajudar a descobrir o que cada um precisa para se forjar como cidadão e profissional, consoante as situações.

É por tudo isto que é tão importante que os novos docentes sem habilitação pedagógica não sejam deixados à sua sorte e lhes seja assegurada a formação de que necessitam e que as crianças, os jovens, as famílias e o país exigem e necessitam.