Ao júbilo que a vitória de Joe Biden provocou entre os europeus, segue-se a difícil tradução da esperança em política. Mais difícil é, quando tem lugar num contexto de forte competição geopolítica. Em causa está a recomposição da relação entre a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha e, no centro dessa recomposição, está o destino da NATO, ou, mais especificamente, a possibilidade da sua europeização.

Os anos de Trump foram úteis para martelar nas duras cabeças europeias que o mundo mudou, e que o pivot asiático dos Estados Unidos está para ficar. Na Alemanha aceitou-se que o país tem que ultrapassar os instintos pacifistas e contribuir militarmente para a segurança do continente. Sinais positivos são visíveis. Mal os resultados provisórios da eleição de Biden foram anunciados, já Berlim enviava uma fragata para os exercícios que Washington comandava com o Quad (Japão, Índia e a Austrália) no Indo-Pacifico. Esta semana, numa intervenção atípica, os alemães abordaram um navio turco no Mediterrâneo.

Mas os anos de Trump também deram azo à deriva francesa para uma “autonomia estratégica” europeia dos EUA. Dado que a NATO, nas palavras de Macron, está “em morte cerebral”, a França recuperou a velha ambição de uma força europeia independente dos Estados Unidos e capaz de se substituir à velha Aliança Atlântica.

No centro de tudo isto está, ainda, a chanceler Merkel. Numa troca de missivas (nos jornais europeus), o presidente Macron e a ministra da Defesa alemã, Annegrett Kramp Karrenbauer, discordaram sobre a centralidade da NATO na arquitetura de defesa europeia e da dependência da Europa face aos EUA. Segundo Macron, a chanceler Merkel está do seu lado no compromisso do desenvolvimento da capacidade militar europeia. Mas Merkel está de saída e a sua política de ambivalência face à Rússia e à China mostra sinais de desgaste. Os atlanticistas em Berlim parecem estar em ascensão entre os candidatos à sucessão da chanceler.

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O último elemento da equação é o Reino Unido. A eleição de Biden pressionou um acordo do Brexit. Depois de quatro anos de atrito, a Alemanha, na presidência do Conselho da UE, finalmente encetou uma verdadeira negociação. Para o Reino Unido, o Brexit e a retração americana dos últimos quatro anos significa que a NATO se tornou ainda mais central. Mas força também Londres, se quiser ter peso, a estar no centro da relação dos EUA com a Europa.

No pós-Brexit, qualquer cooperação do Reino Unido com a Europa terá de ter lugar no seio da NATO, ou bilateral ou trilateralmente com a Alemanha e a França, no formato E3. Para que os programas industriais britânicos não divirjam demasiado dos da Alemanha (bem como da França e da União Europeia em geral), será essencial manter o Reino Unido ativamente envolvido na defesa europeia pós-Brexit.

Apesar de o dados estarem lançados, é essencial que quem se sentar na cadeira de Merkel esteja preparado para investir na recomposição das relações das potências europeias, afastando as miragens de uma autonomia dos europeus face aos Estados Unidos e concentrando-se na europeização da NATO. Se for bem sucedido, ganhará o título de melhor amigo de Biden na Europa.

Madalena Meyer Resende (no twitter: @ResendeMeyer) é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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