Em Setembro de 1911, quase um ano depois de proclamada a República, escrevia o General Lobo de Vasconcelos para Londres ao Rei D. Manuel uma longa carta onde apresenta uma muito nítida e objectiva radiografia do país e das responsabilidades que os vários actores sociais tiveram para que o 5 de Outubro fosse possível. Tinha sido ajudante de campo e oficial às ordens dos últimos dois reis de Portugal e conhecia-o desde criança. Porque é de História que se trata e porque muito do que é dito continua actual, e explica o pais de agora, vale a pena relembrar algumas passagens do documento. A ausência de ligação entre representantes e representados, a irresponsabilização e a falta de preparação das classes dirigentes, os interesses particulares acima dos nacionais, a incapacidade de estabelecer vasos comunicantes entre todos eles. A ausência de um desígnio nacional reconhecido por todos. E uma chefia de estado constitucional, fragilizada pelo assassinato do Rei D.Carlos. O que aconteceu tinha que acontecer. Não por falta de apoio popular à figura do Monarca mas porque o sistema não teve quem o soubesse defender e porque o indiferentismo já então vigente o levou ao seu colapso.

Neste raio-x aparecem todos: classe política, aristocracia, clero, militares, comerciantes e industriais. E nenhum é poupado a responsabilidades. Apenas o povo, a Produtora, é para o autor a única esperança de um Portugal diferente liderado por uma Monarquia regenerada e regeneradora.

São os primeiros os mais visados, logo seguidos pela aristocracia: «Os políticos com que tinha de governar, segundo a Carta, eram completamente incapazes de o ajudarem, uns por falta de competência e sem os conhecimentos indispensáveis, (eram quase imbecis)! Outros, a ambição desmedida cegava-os de modo que não viram que cavavam a honra da Pátria e a sua própria. E assim se formaram a série de ministérios que, não podendo vencer as dificuldades que lhe apresentavam, torneavam nas e à mais pequena dificuldade nova que aparecesse, abandonavam as suas pastas e tentavam levantar novos obstáculos aos que lhes sucediam, para estes não resolverem o que eles não tinham sabido, ou podido, resolver. Daqui a política portuguesa nunca ter uma orientação certa, determinada, reflectindo-se no País, pondo-o no estado de indiferentismo em que o veio a encontrar o 5 de Outubro. A revolução foi contra os seus políticos, que foram os que a ajudaram a fazer, dando lugares rendosos aos que se salientavam na propaganda, a quem se ligavam se deles precisassem para derrubar ministérios.

«A Aristocracia que tinha os seus membros ligados intimamente à Monarquia, não podia já servir de apoio. É certo que existem indivíduos que são verdadeiros aristocratas, mas são poucos, e não chegavam para formar uma classe útil ao fim a que se destinava. Não perceberam a mudança profunda que a abolição dos morgadios trazia à sociedade portuguesa, não educou, com raras excepções, os seus filhos de modo a puderem resistir a essa mudança e daí uma derrocada que lhes fez abrir os olhos e ver as suas consequências, mas já sem as poderem remediar.»

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Se ao clero secular aponta a falta de instrução e o serem galopins eleitorais ao serviço dos partidos, às ordens religiosas o de não serem capazes de promover a educação essencial e determinante ao desenvolvimento do país.

Duro é também o retrato dos militares, «de todos os que mais facilmente poderiam servir de apoio eficaz mas [segundo ele] os monárquicos tiveram a habilidade de a estragarem, de modo que serviu, ainda que vergonhosamente, para fazer cair a Instituição.A maioria dos militares eram e são monárquicos mas os militares só obedecem de boa vontade, a quem possa e saiba vestir uma farda, a quem seja militar como eles». Ou seja, servir. E a divisão entre oficiais e pseudo-militares, entre aqueles que têm vocação e comandam e aqueles que apenas se querem promover sem servir, «juntamente com a falta de meios para o serviço a fazer talvez explique a figura vergonhosa que o exército fez naquele Outubro».

Se ao «Comércio e Indústria interessariam a paz, a verdade é que os principais comerciantes, banqueiros e industriais são estrangeiros, logo não defensores dos interesses nacionais e os portugueses que existem com raras excepções procuram passar à aristocracia com as comendas e benevolências que o dinheiro merece, mas sempre considerados como intrusos». Claro e certeiro como água.

Mas havia, segundo ele, e como atrás referimos, esperança para o futuro «numa classe composta, em grande parte, pelo que antigamente se chamava “povo” e de membros de todas as outras, que se dedicam ao trabalho a que chamará “Produtora”. Que sabe quanto lhe custa o trabalho e por isso ama o produto do seu trabalho; quer guardá-lo e o defende até à última. Precisa de sossego e ordem para continuar a trabalhar, e ainda de orientações certas e determinadas e que só a permanência do Chefe Supremo lhe pode dar, e, por conseguinte e ainda que muitos o não digam, querem a Monarquia. Não a antiga que, enredada em preconceitos e laços de toda a ordem deixou-se maniatar e morrer sem se defender, mas uma Monarquia livre, uma Monarquia que produz (e conduz) o Bem e pensa no Amanhã».

Mais de cem anos depois e com os necessários reajustes na importância e expectativas relativas aos diferentes papéis sociais, o sistema político actual do país, os seus vícios e vicissitudes, está quase todo ali, cada vez mais agudizado pela escravatura do pensamento ou a ditadura de um pensamento cada vez mais único que o autor também refere e que já então se enunciava: «desde que implantaram a “liberdade”, esta desenvolveu-se de tal modo que passou do infinito e mudou de sinal, de modo que, se a sociedade do livre pensamento chegar a radiografar o nosso pensamento nem esse teremos livre e passará a sociedade de “escravo pensamento”; manifestá-lo, isso já não deixam, e, por isso é muito dificil, além de várias outras razões, encontra pessoas com quem se possa falar».

Seja qual for o campo ideológico de cada um (mas esperando que, pelo menos, o tenham) é este um bom exercício, o da reflexão sobre como chegámos até aqui e que país queremos. Pelo 5 de Outubro de 1910 e pelo 5 de Outubro de 1143.

Um dia em que poucos mudaram um regime e outro em que tantos sonharam uma nação nova, livre e independente.