1. O adeus autárquico de António Costa espantou alguns: retórica inflamada, elogios a rodos, holofotes televisivos, plateia escolhida a dedo, cerimónia ao milímetro. Mas poderia ser de outro modo? Não. Mais que a despedida do ex-presidente da Câmara, o que se encenava nos salões doirados do Município eram os restos de glória de António Costa: a aura com que há poucos meses aterrou na liderança do PS, o sopro de invencibilidade de que o diziam portador, a garantia de todas as vitórias.

Durou pouco e ele sabe. A confiança esmoreceu, a percepção mudou e sabe-se o valor que as percepções assumem na contabilidade política: podem ser fatais e dar cabo de tudo. Hoje no PS há mais chatices que ideias, mais disputa que união, mais vozes que nozes. Ninguém consegue explicar capazmente esta, digamos, vertiginosa derrapagem, não se sabe muito bem o que aconteceu ao herói de ontem. Sabe-se é que a desilusão substituiu a aura. Para quem já é alvo de polémica entre os seus e tem andado politicamente aos trambolhões – do Syriza a Nóvoa, passando pela sua passividade face à “mão” de Soares no PS – dizer adeus a Lisboa diante da plateia do país e devidamente envolto em auto-elogios, consentia o remake de todas as ilusões.

Costa endereçou a momentânea glória para o Largo do Rato, fez cópia para S. Bento e por escassos momentos pode ter esquecido o caminho de pedras que o espera. As trapalhadas “presidenciais” em que o PS se meteu ou (o que é pior) deixou que o metessem e os seus próprios desmentidos, não ajudam e embaciaram-lhe a imagem. Acima de tudo, custa politicamente a crer na história com Guterres: quem disse o quê, a quem e quando? Tanto tempo a alimentar esperanças presidenciais afinal tão vãs? Costa sempre soube que António Guterres nunca viria mas não queria avisar o povo? Houve mudança de ideias? Ou é um compasso de espera e o desaparecido engenheiro afinal ainda pode reaparecer para salvar a honra do convento socialista, desamarrando-o de um candidato presidencial “impossível”? Seja o que for, uma (não desfazendo) récita de amadores não produziria pior efeito.

Já sabíamos que a verdadeira corrida política de António Costa começaria no dia em ele que se despedisse de Lisboa. Não sabíamos que o corredor partiria com tão grande desvantagem. A vida é uma surpresa.

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2. Apesar de detestar (sintoma de pobreza mental?) usar vocabulário futebolístico na linguagem política, não me ocorre melhor do que dizer que estou fora de jogo. Deste, das presidenciais. Um pastiche mascarado de “tudo pela pátria”.

Se lhe perguntassem, a pobre pátria certamente recusava ser salva pelos pretendentes à sua felicidade, mas para nossa desdita a pátria não fala. Fala-se por ela, o que não é exactamente a mesma coisa.

Misteriosamente todos os dias nos surgem cavalheiros a “querer” ser Presidentes da República, mas talvez não se tenha visto pior desde 1974: a qualidade não parece a regra, os processos não se recomendam, os silêncios são hipócritas, tudo é oco e tudo parece passar-se na sub-cave. E como a nada somos poupados, houve também aquele inesquecível mas tão leve, tão “in”, tão actual “não estou nem aí” de Paulo Portas. (Um dia talvez se descubra, tal como Santana já o fez, que Portas sempre “estivera aí”… E para onde é que ele há-de ir ao fim de tantos anos de bons e leais serviços?)

Mesmo sabendo que a vida tem de continuar e a “media” tem de reportar, pasma-se porém com a desarmante naturalidade com que se analisa, detalha, interpreta, explica, sinaliza esta soma mal amanhada de contributos (?) cívicos. Ou a sua polca de contributos orais: palpites, explicações, intrigas, remoques, recados, debates, entrevistas.

Pasma-se que se tome tudo isto por “bom” e racional e verosímil em nome de serem “caras novas”, o que em si mesmo pode interessar muito pouco e não querer dizer nada. Há também quem confunda esta erupção de gente que se atribui a si própria um destino, com uma “salutar” vontade de “participação”; quem rejubile com a aterragem de (falsos) independentes no jogo político, mesmo ignorando-se de quê ou de quem são “independentes”; e há quem se extasie com o sinal de vitalidade que significaria esta tômbola de candidatos. Há enfim por parte da plateia – ou parece haver – apetite, volúpia e curiosidade face ao vaudeville do palco.

Mas o caso é que não se vê nada disso canalizado para algo de politicamente substancial ou de nacionalmente relevante. Nem tão pouco se percebe o propósito de tudo isto a não ser uma inopinada vontade de dizer coisas como quem tem vontade de comer um chocolate. Talvez seja preciso deixá-los a falar sozinhos até virem, à sobremesa, os candidatos “verdadeiros”, que devem ser esses que há anos (décadas) estão nisto. Nisto de terem feito de si mesmos auspiciosas promessas para Belém.

Notei também que abriu a época da caça ao voto útil, uma outra forma de chantagem política: “ah, se à esquerda é o Nóvoa, então ao menos é melhor preferir o Marcelo”… Uma espécie de segunda mão, mas “preferi-las” em política costuma ser um péssimo sinal e um péssimo princípio. Um desestabilizador-mor em Belém?

É verdade que tendo aqui defendido há tempos a candidatura presidencial de Jaime Gama, nunca alimentei grandes esperanças sobre essa desejável possibilidade. Fiz parte de um pequeno e artesanal grupo de simpatizantes dessa veleidade que a vinham alimentando por nos parecer não uma boa ideia, mas a melhor ideia. Quando o escrevi, juntei-lhe outro excelente cidadão, Francisco Balsemão. (A simples menção destes dois nomes isola de imediato a questão presidencial do ébola da feira de vaidades e de quinquilharia em que está hoje).

Não tive sorte. Mas talvez seja como nas marés: depois da baixa, vem a alta. A menos que a alta seja um sorriso de assentimento político de Costa a Marcelo e então tudo estaria explicado: não é verdade que lhes facilitaria as respectivas ambições? Outra surpresa? Nem tanto.