Temos, metaforicamente falando, um novo Governo. Um Governo em que o ministro das Finanças recorda agora que o sol nem sempre brilha, alinhando-se com o título que um dos seus antecessores, Vítor Gaspar agora no FMI, escolheu para dar a um dos capítulos do relatório sobre finanças públicas: “Poupando para dias de chuva”. Um Governo em que o primeiro-ministro sublinha que não há nenhuma folga orçamental, há é menos défice que continua a ter de ser financiado.

Quais são os verdadeiros António Costa e Mário Centeno? Os que nos anunciaram o fim da austeridade e que fizeram o País correr o risco de um segundo resgate entre finais de 2015 e o início de 2016? (Sim, corremos esse risco até Bruxelas e os investidores perceberem que o fim da austeridade ia ser compensado com cortes na despesa que apenas se iriam perceber a prazo. Por aqui, em Portugal, fomos enganados durante algum tempo, com a cumplicidade do PCP e do Bloco de Esquerda.)

Ou os verdadeiros António Costa e Mário Centeno são aqueles que agora ouvimos defender que temos de aproveitar esta oportunidade para resolver de vez o problema das finanças públicas? Um Governo que se recusa, perante as exigências do Bloco de Esquerda e do PCP, a aumentar despesa pública de 2018 para lá da que está autorizada no Orçamento.

O ministro Mário Centeno que ouvimos na apresentação do Programa de Estabilidade e nas entrevistas que deu à TSF e ao Jornal de Negócios parece outra pessoa. O “novo” Mário Centeno defende explicitamente disciplina financeira. Avisa-nos, e bem, como aconteceu na apresentação do Programa de Estabilidade, que “o risco de retrocesso [em matéria orçamental] existe e é maior do que parece, principalmente quando as coisas nos correm bem”. Recorda, como nas entrevistas que deu esta semana, os sucessivos erros que cometemos e oportunidades que perdemos desde a década de 80 do século passado. Fala-nos na necessidade de colocar as contas públicas num porto seguro. Enfim, consegue-se agora reconhecer na Praça do Comércio um ministro das Finanças.

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É a política, estúpido (ou estúpida)! Nesta nova fase, como nos últimos dois anos e quase meio.

Na primeira fase era preciso estabilizar o poder, apoiado em dois partidos que consideram que a solução para as finanças públicas, e para o crescimento económico, está na reestruturação da dívida. Queriam apoiar o Governo mas nunca o poderiam fazer se António Costa e Mário Centeno dissessem que tinham como objectivo fazer tudo o que fosse necessário para compensar, com cortes noutros gastos, o aumento da despesa das reposições de direitos e de rendimentos. Nessa primeira fase, que agora termina vivemos, a parte do fingimento. O Governo fingia que se estava nas tintas para o défice público e o Bloco de Esquerda e o PCP fingiam que acreditavam que não estavam a ser adoptadas medidas de redução da despesa por via das cativações.

Com o tempo e sucesso financeiro que foi obtendo, graças também à recuperação económica europeia, o Governo ganhou margem de manobra e os partidos que o apoiam – tal como a oposição – foram perdendo espaço de critica. Está, como diz o primeiro-ministro para quem o apoia, a cumprir-se os acordos que assinaram. Como vêm o diabo não veio e o PS libertou-se do seu fado de despesista, pode também dizer António Costa para o PSD e o CDS.

Nesta segunda fase António Costa e Mário Centeno já têm margem de manobra para revelarem que a sua prioridade é, e sempre foi, e bem, reduzir a dívida pública para valores que coloquem Portugal num porto seguro quando chegar uma nova crise. Podem mostrar o que de facto defendem. Ingenuidade absoluta, dirão os cínicos. É a política, de novo, dirão. Fingir que não se ligava nenhuma à disciplina financeira serviu para estabilizar o poder. Expor agora a prioridade à disciplina financeira serve para conquistar o poder, colocando o PS mais ao centro, o espaço onde se consegue a maioria absoluta. Talvez assim seja.

Durante quase dois anos e meio, o Governo disse uma coisa e fez outra, como se alertou várias vezes neste espaço a partir determinada altura. Reduziu o défice público e caminha para o excedente orçamental, está a conseguir controlar a dívida e tem consciência que está longe de ter o problema das contas públicas resolvido. Mais do que tudo isso, concretizou em 2017 uma política orçamental que segue as melhores práticas de política económica: contra-cíclica, como salienta o Conselho de Finanças Públicas.

Fez tudo isso à socapa, dizendo que não o estava a fazer – afinal estavam a ser repostos rendimentos com a eliminação dos cortes salariais na função pública e das pensões e o fim da sobretaxa. E como é que se concretizar uma política de redução do défice público mascarada de expansionista, como se finge que não se está a fazer fazendo? Cortando em despesa pública que não tem representantes, que não está capturada, que é de todos e não é de ninguém. Despesa pública que só se nota que faz falta a prazo. É assim que chegamos aos cortes no investimento público.

O importante, dirão os pragmáticos, é atingir os objectivos. Os meios com que se atingem esses objectivos não são relevantes. Se é preciso fingir, finge-se. Se é preciso cortar em despesa, que se corte na que não tem associações ou sindicatos que a defendam. Esta pode ter sido a táctica que conseguiu conciliar os objectivos económico-financeiros (de redução do défice e conquista da confiança na economia) com os objectivos políticos (de conquista e estabilização do poder). E deste ponto de vista António Costa e Mário Centeno foram brilhantes na frieza com que traçaram e concretizaram este caminho. Mesmo sabendo que, se corresse mal, o país pagaria um preço elevado. Mesmo sabendo que não estava a dizer toda a verdade ao seu povo. Mesmo sabendo que cortar despesa pública sem voz é desproteger os mais frágeis, os que precisam dos serviços públicos básicos. Mas tudo isso só se vê a prazo, como só a prazo um dia o povo poderá perceber os fingimentos.

Para já podemos cantar vitória e respirar de alívio com este novo António Costa e Mário Centeno. Que nos prometem resolver de vez o problema das finanças públicas.  E esperar que a política que foi seguida não tenha feito muitos estragos na economia, na sociedade e na confiança nos políticos.