Nunca é fácil sermos pais! Trabalhamos 365 dias por ano. Sete dias por semana. Sem direito a férias, folgas e feriados. Vendo bem, sermos pais representa outro trabalho para além do trabalho. Repartido entre educar ou alimentar uma criança; as mais pequenas brincadeiras; levá-la à escola, ao futebol, ou às explicações; zangar-mo-nos, preocuparmo-nos com os trabalhos de casa ou mandá-la arrumar o quarto. Qualquer filho requer atenção e carinho, claro. O “sexto sentido” sempre no “on”. E, sobretudo, tempo. Muito tempo!

Mas se, em circunstâncias normais, o trabalho de pais nunca é levado em linha de conta (havendo quem considere que pode chegar a uma estimativa de custo efectivo de 75€ por dia, por filho), durante a quarentena, o trabalho de pais deixou de se dar em “part-time” e passou a decorrer em “full-time”. Por outras palavras, foi “levado ao limite”: pais a trabalharem como pais  “24 horas” por dia, sem interrupções, sem hora de almoço, sem fins de semana e sem direito a burnouts de pais. E, sobre tudo isso, muitas outras tarefas que, tão depressa os transformavam em professores ou em explicadores, como em animadores culturais, animadores de tempos livres ou gestores de conflitos. Estando a maioria em teletrabalho, sem limites de horário e, todavia, com desempenhos considerados surpreendentes pelas suas entidades empregadoras. E com as suas vidas de pais, de auxiliares de educação e de trabalhadores dedicados a decorrer no perímetro de uma sala. Convertida num “open space” em que todos trabalhava em “co-work”.

Tentando perceber o trabalho de pais no decurso da quarentena, organizámos no BabyLab da Universidade de Coimbra um estudo* que pretendia avaliar o tempo de trabalho de pais. E relacionar estes resultados com o seu nível de satisfação com a vida. Entende-se por “trabalho de pais” todo o tempo que a mãe ou o pai dedicam ao(s) seu(s) filho(s). Seja a preparar-lhe(s) refeições, a auxiliá-lo(s) na sua higiene, a levá-lo(s) à escola, a dedicarem-se às atividades extracurriculares, a brincar com ele(s), a ajudá-lo(s) com os trabalhos de casa, etc.

A maioria dos pais inquiridos estava em confinamento há mais de 1 mês, na altura em que responderam ao questionário proposto. Mais de metade dos pais inquiridos (54,6%) sente ter tido menos ou nenhum apoio durante este período.

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As maiores dificuldades assinaladas no período de quarentena – mais do que aquelas que se relacionam com o teletrabalho, por exemplo – são, sobretudo, as que se prendem com os seus filhos: “Acompanhar os filhos na telescola e nos trabalhos escolares”; “Saber como ocupar o tempo dos filhos”; “Gerir conflitos familiares”. Já o nível de conflito familiar, parece proporcional ao número de filhos de uma família. Isto é, a quarentena, por exemplo, parece não ter trazido mais conflitos às famílias com um único filho.

Para a maioria, o seu “dia de trabalho” de pais, durante a quarentena, passou a iniciar-se uma hora mais tarde, considerando a hora anterior a esse período, e a terminar uma ou duas horas para lá do que lhes era habitual. As 8h da manhã marcam o seu início, para 46,4% dos pais, que terminam depois das 22h ou das 23h, em 67,7% das situações. As “tarefas “Tratar da higiene”, “Gerir refeições”, “Fazer camas/arrumar o quarto”, “Tratar da roupa da criança”, “Levá-los à escola/atividades extracurriculares”, “Brincar” e “Apoiar nos trabalhos de casa”, apresentam diferenças significativas, o que revela uma alteração na sua gestão por parte dos pais. Sendo que a sua maioria (mais de 60%) reconhece que a distribuição deste trabalho não é homogénea entre ambos os pais, sobrecarregando mais as mães.

A maioria dos pais (55,4%) considera a quantidade de trabalhos escolares, neste período, moderada ou adequada, sendo que 22,8% a classificam como exagerada.

Durante a quarentena, e considerando um dia de semana, 77,9% dos pais passa pelo menos 1 hora a ajudar os filhos nos trabalhos de casa. 46,4% passam mais de 2 horas por dia a brincar com os filhos. E 40,1% mais de 2 horas por dia a ver televisão. A maioria dos pais (77,4%) reconhece recorrer aos aparelhos electrónicos para minimizar conflitos familiares e entreter os filhos.

Mais de 80% reconhece que, neste período de confinamento, ter menor disponibilidade de tempo para si. Em média, os pais sentiram-se, de forma muito significativa, menos satisfeitos com a sua vida. Estes valores mostram-se dependentes do tipo da habitação em que moram, do tempo que têm para si e do apoio de terceiros ao seu “trabalhos de pais”. Além disso, existe uma relação significativa e proporcional entre a satisfação com a vida e o número de filhos. Do mesmo modo, este grau de satisfação é tanto maior quanto menor é o nível de perceção exigido nos trabalhos escolares, quanto menos conflitos familiares existirem e quanto mais homogénea é a distribuição do “trabalho de pais”.

As crianças – apoiar as suas tarefas escolares, acompanhá-las na telescola, ocupá-las e gerir os conflitos familiares em torno delas – são identificadas como as maiores dificuldades durante a quarentena. Porque elas terão sido, também, “o centro” das suas preocupações. O aumento de tempo de trabalho de pais, neste período, faz-se sacrificando o tempo de que dispunham para si próprios. O acréscimo de trabalho de pais parece ter acentuado uma divisão heterogénea das responsabilidades educativas, durante a quarentena. Sem flexibilidade de horários. E sem interrupções. Acrescido pelo acompanhamento escolar aos filhos, que se terá transformado num factor acrescido de stress para todos. E que fez com que muitas das tarefas laborais, relacionadas com o teletrabalho, ficassem pendentes para depois das crianças adormecerem, chegando a estender-se até à madrugada. Acresce que a amostra a que tivemos acesso tem, como um dos seus enviesamentos* mais importantes, o nível escolar das pessoas que colaboraram. O que nos leva a presumir, pelos dados ao nosso dispor, que as discrepâncias na divisão das tarefas parentais, as limitações de espaço de inúmeras famílias portuguesas, as suas preocupações financeiras e apreensões quanto a não conseguirem corresponder a todas as necessidades dos seus filhos (escola, incluída), poder ser, ainda, mais significativa. O que fará com que a saúde mental das famílias portuguesas tenda a estar, a prazo, comprometida por tudo aquilo que tem vindo a ser exigido aos pais e a que, num verdadeiro estado de emergência parental, eles corresponderam neste período de confinamento.

O fim de algumas das medidas impostas pelo Estado em resposta a esta pandemia não corresponde ao fim do “estado de emergência parental” que os pais têm vivido. Até porque muitos daqueles que se encontravam em teletrabalho permanecem nessa condição. Agora, cada vez mais cansados. E com a preocupação acrescida de, se for o caso, gerirem o desconfinamento social dos seus filhos quando começam a regressar às creches e à escola, sem que tenham, ainda, dados irrefutáveis acerca das consequências que recairão sobre eles. Na verdade, as preocupações com os seus filhos, com os seus pais e com o seu trabalho terão feito (e continuarão a fazer) com que os pais não tenham, sequer, oportunidades para pensar em si mesmos. Nos seus conflitos e nas suas relações pessoais. O que, com prudência, talvez nos leve a considerar que, quando se der um verdadeiro “desconfinamento parental”, o “estado de emergência parental” em que têm vivido – que os “obriga” a funcionar, quase sempre em “modo de alerta” e sem espaço para mais nada que não seja para as responsabilidades que têm com os seus filhos, com os seus pais e com o seu trabalho – dará, muito provavelmente, lugar a mais estados de exaustão, a atmosferas com uma “aragem depressiva” e à emergência de conflitos familiares. Que, a suceder assim, farão das próximas férias de verão (elas próprias também sujeitas a algum confinamento) um espaço menos relaxado e menos “nutritivo” do que elas poderiam ser.

Por mais que os recursos de saúde mental dos pais e das famílias tenham dado provas inequívocas nesta quarentena, não se confunda resiliência com “estado de emergência parental”. Os pais são saudáveis, resistiram à quarentena de uma forma surpreendente mas, a prazo, precisarão de “descomprimir”. É pois natural – e saudável, até – que, após o “desconfinamento da paciência” que muitos pais e muitos filhos vêm manifestando, haja sobressaltos nuns e noutros, num futuro próximo, de forma a que possam, finalmente, metabolizar tudo aquilo que lhes tem vindo a ser exigido. Pais e filhos irão “precisar” de passar por períodos em que se sentirão mais irascíveis e impulsivos. Por outro lado, as crianças vão precisar de perceber que as regras mais “adocicadas” em relação aos brinquedos electrónicos, à televisão e a outras rotinas de todos os dias vão precisar de um “período de carência” para voltarem ao que eram. Os pais irão perder o seu equilíbrio mais vezes. As relações de casal irão “constipar-se” com outra frequência. Mas, ao pé dos sobressaltos de uma espécie de “vulto de morte”, serão essas reacções pós-confinamento que nos dão “imunidade de grupo” para que, depois de tudo isso, olhemos para outros desafios, mais fortes do que éramos, antes da quarentena.

PS. Esta investigação resulta de um total de 4153 respostas, recolhidas online. A população-alvo à qual se refere é constituída por mães e pais, sem restrições de orientação sexual nem de estado civil, com filhos com idades até aos 12 anos. A amostra compõe-se por 97,2% de pessoas do sexo feminino e por 2,8% do sexo masculino. A idade média é 39,79 anos, sendo que 97,1% têm entre 30 e 49 anos. Os inquiridos residem desde o norte ao sul do país, litoral e interior e regiões autónomas, e 75,2% vivem numa zona, predominantemente ou parcialmente, urbana. 71% possui algum grau do ensino superior e 91,7% estão, atualmente, empregados. No que respeita ao seu estado civil, 85,1% estão casados ou em união de facto e 87,5% dos sujeitos estão numa relação heterossexual. A maioria tem 1 ou 2 filhos (87,1%). E a amostra demonstrou-se homogénea quanto às suas faixas etárias. Relativamente ao tipo de habitação, 72,7% vive num apartamento ou moradia com varanda, terraço ou jardim. Durante o período de isolamento social, 338 sujeitos (8,8%) continuam a exercer as suas funções laborais no local de trabalho e 1884 sujeitos (48,9%) estão a exercer as suas funções laborais via teletrabalho, em casa. 377 (9,8%) fazem-no alternadamente entre o local de trabalho e o teletrabalho. Dos restantes, 61 (1,6%) perderam o emprego, 662 (17,2%) suspenderam as suas funções laborais para ficar em casa a tomar conta dos filhos, e 289 (7,5%) suspenderam as suas funções laborais por outros motivos. 165 sujeitos (4,3%) já se encontravam desempregados antes da quarentena. Este estudo tem como entidade promotora o Babylab da Universidade de Coimbra, e contou com as investigadoras Alexandra Fernandes, Andreia Cordeiro, Inês Bastos e Marisa Taborda.