Nunca a ordem mundial liderada pelos americanos depois de 1945 esteve tão ameaçada. A governança mundial baseada em valores e normas, que sobreviveu aos anos mais tensos da Guerra Fria, agora parece não ter a mesma vitalidade para resistir aos ataques dos inimigos da liberdade em tempos de paz quente. Entretanto, a principal fonte de fraqueza do liberalismo internacional está relacionada com o papel desempenhado pelos idealizadores e patrocinadores da atual ordem, os Estados Unidos. Suas ações controversas diante de antigos aliados e de adversários recalcitrantes têm contribuído para a erosão dos pilares que sustentam o edifício liberal – solidariedade democrática, segurança coletiva, cooperação multilateral e livre mercado.

Desde que tomou posse em janeiro de 2017, Donald Trump tem se mostrado um frenético e ambicioso jogador, mas de habilidade duvidosa na condução dos negócios estrangeiros. Cada tweetdo presidente americano soa como um furacão capaz de desestabilizar o equilíbrio do sistema internacional. Na esteira de uma sequência de decisões polémicas, como o corte drástico no orçamento da ONU, Trump protagonizou na semana de 10 a 16 de julho episódios que mostram sua disposição em desmontar décadas de política exterior americana. A estratégia concebida pelo presidente Trump de ataques frontais às instituições ocidentais parece não deixar dúvidas de que Washington está disposta a contribuir para o reordenamento mundial na direção das ambições dos principais inimigos do Ocidente.

Em Bruxelas, a aliança militar euro-atlântica foi colocada à prova. Sob ameaça de os Estados Unidos abandonarem a OTAN e seguirem sozinhos seu próprio caminho para garantir a segurança externa americana, seus membros foram instados a aumentarem a colaboração financeira. A União Europeia, cujas estruturas encontram-se abaladas pelo Brexit e pelo avanço de movimentos nacionalistas exacerbados, teve sua vulnerabilidade exposta pelas declarações inadequadas de Trump, que classificou a UE de inimiga dos Estados Unidos. As críticas depreciativas à primeira-ministra britânica e à chanceler alemã, humilhadas em tweetsdisparados entre uma reunião e outra, sinalizavam qual seria o comportamento do presidente americano no último e mais importante compromisso em solo europeu.

Oportunidade perdida

Na tão esperada reunião de cúpula com Vladimir Putin em Helsínquia, Finlândia, a primeira desde o azedamento das relações entre Estados Unidos e Rússia por conta da anexação ilegal da Crimeia em 2014, Trump optou por abraçar o inimigo e demonizar os aliados. Quem esperava que Putin seria confrontado por Trump por causa da interferência russa na eleição de 2016 decepcionou-se. Mesmo diante de evidências divulgadas pelos serviços de inteligência e agências de informação na semana anterior, Trump preferiu acreditar na palavra de Putin. Na coletiva que sucedeu à reunião entre os dois líderes, de portas fechadas e que durou mais de duas horas, Trump declarou que “o presidente Putin foi extremamente forte e poderoso em sua negação hoje”.

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Em casa, a reação dos críticos foi imediata e visceral. “Vergonhoso”, “traidor” e “fraco” foram palavras usadas para qualificar a atitude de Trump, que dividia o palco internacional com o homem que ele mesmo descreveu como um importante competidor dos EUA – mas que ele também elogiou como um líder forte e eficaz. A crítica mais franca veio do senador republicano pelo Arizona John McCain, que tem se mostrado ponderado ao avaliar o governo do colega de partido, mas que não nega que houve interferência de Moscovo. Para McCain, Trump fez uma “escolha consciente de defender um tirano” e conseguiu “uma das performances mais vergonhosas de um presidente americano na memória”.

A semana foi consumida pelas tentativas da Casa Branca em gerenciar a crise instalada pelo desempenho de Trump em Helsínquia. Por outro lado, Vladmir Putin regozija-se com a vitória, mais uma. E tudo indica que vai se cansar de ganhar. A eleição de 2016, que parece nunca acabar devido à suposta intromissão russa, continua semeando discórdia e desorientação na política americana, cumprindo assim o roteiro escrito pelo Kremlin de desestabilizar e enfraquecer a democracia dos EUA. Entretanto, se o debate entre os dois líderes não ultrapassou a polémica eleição de Trump, que não deve admitir o real peso da interferência externa na sua vitória, sob pena de ter manchada a própria credibilidade da conquista do mandato, problemas de âmbito mais alargado não mereceram o tratamento que se esperava.

Se foram discutidos a portas fechadas, não resultaram em compromissos tácitos, formais. Aliás, esta tem sido a forma como Trump trata sua política exterior, na base de platitudes e shows mediáticos. A exemplo da cimeira com Kim Jong-un, que não resultou em garantia alguma de que a Península da Coreia será desnuclearizada, o presidente estadunidense tenta passar para o mundo a imagem de um protagonismo, que, superficial, não resiste à primeira interpelação de chefes de Estados autocráticos. No caso da Coreia do Norte, seria fundamental extrair de Vladmir Putin compromisso expresso com o desmantelamento da geringonça nuclear de Kim Jong-un.

Da mesma forma, o conflito no Leste da Ucrânia, envolvendo rebeldes separatistas apoiados por Moscou contra as forças convencionais do governo ucraniano pró-Ocidente e que já contabiliza mais de 10 mil mortos, parece esquecido pelos americanos e seus aliados, consumidos que estão pelos próprios problemas. Na coletiva dos chefes de Estado, houve quem avançasse a ousada questão sobre o reconhecimento americano do estatuto da Crimeia como parte do território da Federação Russa. A relutância de Trump em tratar o assunto tende a fazer com que este se torne mais um conflito congelado envolvendo o Kremlin, casos da Abecásia e a Ossétia do Sul (territórios da Geórgia), Transnístria, região pertencente à Moldávia. Todos ocupados pela Rússia sob o argumento de proteger suas minorias étnicas.

Na Síria, a situação parece seguir o mesmo caminho. Apesar de Trump e Putin terem dito que vão trabalhar juntos para garantir a fronteira de Israel com a Síria, restaurando o cessar-fogo nas colinas de Golan, e cooperar para levar ajuda humanitária para combater o impacto da guerra civil, não há muito o que se comemorar. O jogo geopolítico no Oriente Médio é muito mais complexo e também envolve a questão do programa nuclear iraniano, inimigo de Israel e presente na guerra da Síria ao lado da Rússia. Como principal aliado do Irão, Putin não foi confrontado à altura por Trump sobre a leniência de Moscovo diante do desrespeito praticado pelo regime de Teerã aos tratados internacionais de não proliferação de armas atómicas.

Com a ajuda de Trump

Quando o atual mandato de Vladmir Putin terminar, em 2024, o presidente russo terá ficado mais de 25 anos à frente do comando do país. Desde que assumiu o cargo de primeiro-ministro de Boris Yeltsin, em agosto de 1999, Putin tem direcionado seus esforços dentro e fora de casa para restaurar o statusde potência da Rússia. O líder russo consagrou-se à frente de um movimento nacionalista conservador que luta contra o decadente Ocidente. Uma narrativa que agrega valores da cultura euroasiática foi estruturada pelo Kremlin para resgatar a tradição autoritária do país em substituição à tentativa frustrada de transição do comunismo para a democracia liberal.

A alavancagem económica durante a primeira década do milénio, elevou o país ao posto de potência energética e deu à Rússia a confiança necessária para endurecer o jogo com o Ocidente (a Europa depende do gás russo para sobreviver). A afirmação hegemónica sobre o Exterior Próximo, a aliança com a China superando históricas divergências, a composição de tratados de segurança e a criação de organizações internacionais na Ásia-Pacífico têm como pano de fundo o enfrentamento ocidental e o redesenho do balanço de poder na direção da multipolaridade. Usar as instituições multilaterais para o enfraquecimento da ordem liberal é uma tática recorrente da Rússia. A ação concertada da Rússia e da China no Conselho de Segurança, por exemplo, representa a sistematização de uma estratégia que contribui para a insignificância da ONU em determinadas matérias, sobretudo naquelas relacionadas aos temas de segurança e defesa.

Os policy makers do Kremlin trabalham ativamente para fazer dos valores civilizacionais que unem a Rússia a outros regimes autoritários uma alternativa ao pretenso universalismo ocidental. Isto é, um campo de atração para democracias iliberais e regimes antidemocráticos de todos os matizes. A cumplicidade de Putin com regimes autoritários como o da China, Coreia do Norte, Síria, Irão e, no caso da América Latina, de Cuba e Venezuela, além da forma com que tenta legitimar as pretensões daqueles “Estados Perigosos”, como foram denominados pelo professor e diretor do Programa de Estudos Estratégicos da Universidade Johns Hopkins, Eliot A. Cohen, não deixa dúvida de que o mundo está vivendo uma onda reversa de democratização. Entretanto, a história é implacável em provar que toda vez que a democracia perde terreno o mundo é capturado por guerras de grandes proporções.

Em outra dimensão, da forma como o Ocidente tem conduzido suas relações exteriores, os “Estados Perigosos” não estão mais sozinhos na empreitada. Os tradicionais inimigos da ordem liberal ganharam um reforço de peso para empurrá-la para o abismo. O principal artífice da desordem que parece tomar conta da governança internacional reside no Salão Oval da Casa Branca desde o início de 2016. A contribuir para agudizar o processo de erosão da ordem liberal, Donald Trump não perde oportunidade de semear mais discórdia e permitir o fortalecimento da narrativa do Kremlin sobre a debilidade dos valores ocidentais, a começar pela dúvida na capacidade da democracia liberal em promover desenvolvimento constante.

Diante de crises persistentes, a divergência de conduta entre Estados Unidos e Europa parece ser a pá de cal que faltava ao internacionalismo liberal iniciado por Woodrow Wilson no início do século XX. Enquanto europeus valorizam o respeito aos tratados e instituições, americanos abraçam a geopolítica do poder, num crescente aumento do apetite por soluções unilaterais. A recente saída do Conselho de Direitos Humanos da ONU serve de indicativo do pouco interesse dos EUA na preservação da governança mundial criada por eles próprios, abrindo profundas fissuras na antiga aliança transatlântica e gerando descrença em soluções cooperadas.

A União Europeia tem consciência de que não consegue garantir sozinha a segurança da Europa sem a cooperação americana. Uma possível saída dos EUA da OTAN, principal colaborador da organização, poderia conduzir a Europa para uma corrida armamentista. Foi precisamente o papel de garantidor de segurança internacional assumido pelos EUA a partir de 1945 que fez a Alemanha, assim como o Japão, optar pela modesta condição de trading states, na definição do pesquisador e cientista político da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) Richard Rosecrance.

O pouco provável fim da OTAN representa a cereja do bolo que Putin quer ter o prazer de degustar. O alargamento da aliança militar na direção das fronteiras russas foi o leitmotiv do recrudescimento das relações entre a Rússia e os Estados Unidos e seus aliados europeus. Em apenas uma década e meia desde o fim da URSS, em 1991, a adesão maciça de ex-satélites soviéticos e dos três Estados bálticos às organizações ocidentais foi entendida por Moscovo como uma tentativa de cercar e isolar a Rússia, uma ameaça direta à segurança do país. Putin conseguiu interromper o avanço dos Estados Unidos sobre seus interesses nacionais. Mais ainda: os russos inverteram o jogo. Diante da franqueza do seu presidente, os interesses dos Estados Unidos continuam ameaçados em casa e no exterior. Serão necessários muitos tweetspara recolocar a máquina de política exterior americana nos trilhos. Ou não.

Doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.