1 Na passada segunda feira, 2 de Dezembro, teve lugar, no auditório da Rádio Renascença, uma sessão de apresentação de um novo livro, intitulado “Escola de todos, para todos, com todos”. Com um prefácio do ex-Presidente Ramalho Eanes, um posfácio do Prof. Barbas Homem e introduções do Bispo D. António Moiteiro e do Dr. Fernando Magalhães, o livro reúne artigos de 29 autores, todos dedicados à questão fundamental das liberdades de educação, sobretudo de educação escolar. A título de declaração de interesses, direi que eu próprio participo neste elenco. A sua coordenação é da Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC); e a edição é da Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã. Mas o livro não tem uma intenção confessional — nele se defendem as mesmas liberdades de educação igualmente para todos. Os seus autores, uns são publicamente crentes, outros não são crentes, também publicamente. A liberdade de educação, familiar e escolar, é um ideal e uma aspiração que une todos os homens que respeitam e servem a dignidade da pessoa humana, subscrevendo e observando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), bem como os dois Pactos Internacionais que a complementam: o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Felizmente, a doutrina destes solenes documentos (de vigência universal para os Estados das Nações Unidas) está acolhida na Constituição Portuguesa; mas, infelizmente, não é respeitada nem é cumprida pelo Estado Português. E daí uma especial justificação deste livro.

2 A sessão de apresentação do livro foi rica de intervenções, e em balanço final muito interessante e culta. Aberta pelo Secretário Geral da APEC, e coordenador executivo do livro, o Doutor Jorge Cotovio, foi depois preenchida pelas intervenções de um painel de oradores moderado pela jornalista Graça Franco. Em curtas mas substanciosas intervenções, amável mas firmemente controladas na sua duração pela moderadora, falaram o Presidente da APEC, Dr. Fernando Magalhães, o Senhor Bispo D. António Moiteiro (Presidente da Comissão Episcopal para a Educação), o Prof. Barbas Homem (Reitor da Universidade Europeia e reconhecido especialista em Direito da Educação), e finalmente o Dr. Marques Mendes, este último na pesada incumbência de uma apreciação final do livro, que cumpriu muito bem.

3 Mas tão importante como noticiar, é fazer e partilhar uma reflexão sobre este invulgar encontro. Pessoalmente, interrogo-me como é que um problema tão importante, como o dos direitos fundamentais de educação (quer os “direitos de liberdade”, quer os “direitos sociais”) é tão bem compreendido e respondido por qualificadas personalidades portuguesas e, simultaneamente, vem permanecendo por tanto tempo mal resolvido nas nossas políticas governamentais. E como é possível entender que a uma luta tão viva (uma das mais vivas) na Assembleia Constituinte, sobre as liberdades de ensino, depois prolongada nas primeiras revisões constitucionais — que, finalmente, deram a Portugal uma “Constituição Educativa” personalista, liberal e democrática —, se tenha seguido uma apatia partidária e civil perante as políticas educativas de sucessivos governos, que não respeitam a nova “Constituição Educativa” e continuam a seguir políticas jacobinas de Estado-educador?

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4 Deixo esta interrogação aos estimados leitores. Mas recordando-lhes o que escreveu uma extraordinária e marcante personalidade feminina do séc. XX,  Hannah Arendt (1906 – 1975): «O objectivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas sim destruir a capacidade pessoal de livremente se formar alguma». Por mim, e agora aqui, limitar-me-ei a uma (breve) crítica à argumentação que tem pretendido iludir a inconstitucionalidade das nossas políticas públicas educativas.

5 Como se sabe, os defensores do monopólio estatal do ensino escolar argumentam sempre e só com o art. 75.º da Constituição, que diz assim, no n.º 1: «O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos que cubra as necessidades de toda a população». Ora, esta disposição normativa apenas impõe ao Estado a obrigação instrumental de criar uma “rede escolar”. Mas a Lei de Bases do Sistema Educativo integra expressamente a rede escolar no que chama de «recursos materiais» do «sistema educativo». No seu capítulo quinto, conceitua como “recursos materiais” os edifícios escolares, a rede escolar, outros recursos materiais (como manuais, bibliotecas, equipamentos laboratoriais, oficinas) e, finalmente, o financiamento da educação (cf. arts. 37.º a 42.º da LBSE). E isto tem de ser entendido à luz das definições que a mesma Lei de Bases estabelece, logo no seu art. 1.º, onde faz  a distinção entre “estruturas e acções educativas”, as quais — diz expressamente a Lei — podem ser diversificadas e por iniciativa e responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas. Manifestamente, portanto, a criação de estabelecimentos escolares não é monopólio do Estado e é apenas criação de estruturas educativas; e não é ainda, por si mesma, acção educativa. E a prova definitiva é que a mesma Constituição que obriga o Estado a criar escolas, proíbe o Estado de educar: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43.º).

6 Em conclusão, a obrigação de o Estado criar uma rede de estabelecimentos escolares que seja suficiente para acolher todos os alunos que escolham as escolas do Estado (seria ridículo que o Estado fosse obrigado a ter uma rede com escolas vazias, para acolher vinte por cento dos alunos portugueses que de facto e de direito escolhem as escolas privadas), não lhe dá nenhum direito a um monopólio da «acção educativa»; nem dá, aos alunos das escolas estatais, um exclusivo do benefício da gratuitidade do ensino.

7 Quanto ao financiamento da educação pelo Estado, essa obrigação jurídica resulta de outras disposições constitucionais, que o não limitam às estruturas escolares estatais. A obrigação de financiamento público da educação, além de constar de instrumentos internacionais que vinculam o Estado português, está claramente consagrada no art. 74.º da Constituição, que diz assim: «Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. [E acrescenta] Na realização da política de ensino, incumbe ao Estado: assegurar o ensino básico universal obrigatório e gratuito; […] estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino».

Ora bem, é preciso sublinhar que portanto a Constituição diz que «todos» têm direito à gratuitidade do ensino obrigatório?

8 É bem sabido que, ao longo de toda a nossa tradição jacobina (de 250 anos) em matéria de liberdade de ensino, o Estado sempre oprimiu (em grau variável) as liberdades fundamentais de aprender e de ensinar. Mas, actualmente, no regime constitucional em vigor, o papel do Estado em matéria de educação escolar não é um privilégio ou um direito do Estado; mas é sim um dever de garantir que seja efectivo para todos (com igualdade de oportunidades e sem discriminações negativas) o exercício das primordiais liberdades pessoais de educação e ensino, que são tituladas pelos cidadãos.

9 Só por ignorância ou má fé se pode actualmente defender, em políticas públicas de educação escolar, que a satisfação estatal de “direitos sociais” pode ter como consequência a discriminação negativa de «direitos, liberdades e garantias» e de «direitos sociais» constitucionais dos cidadãos. O Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), a que Portugal está sujeito, reconhece (no art. 13.º) o direito social «de todos» à educação escolar. E reconhece, também expressamente para todos, o direito universal à gratuitidade (financiada pelo Estado) do ensino obrigatório. Mas do mesmo passo determina o seguinte: «Os Estados signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais, ou, se for o caso, dos tutores legais, de escolherem para os seus filhos ou pupilos escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas, sempre que aquelas satisfaçam as normas mínimas que o Estado estabeleça ou aprove em matéria de ensino, e permitam que os seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa ou moral de acordo com as suas próprias convicções.»

10 Ora, este reconhecimento de fundamentais liberdades de escolha da escola não pode ser acompanhado de discriminações em outros aspectos. E o Pacto reforça esta garantia acrescentando: «O disposto neste artigo não poderá ser interpretado como uma restrição à liberdade dos particulares e entidades para estabelecerem e dirigirem instituições de ensino, com a condição de respeitarem os princípios enunciados no [anterior] parágrafo 1, desde que a educação dada nessas instituições se ajuste às normas mínimas estabelecidas pelo Estado.»

11 Obviamente, Portugal não cumpre o que está estabelecido «para todos», na nossa Constituição e no PIDESC, porque discrimina os alunos das escolas privadas, que (sem por isso perderem o direito à gratuitidade do ensino obrigatório) têm o direito de escolher a escola, como reconhece expressamente a Lei n.º 85/2009 (da iniciativa do Governo de José Sócrates). Diz assim esta lei: «A escolaridade obrigatória implica, para o encarregado de educação, o dever de proceder à matrícula do seu educando em escolas da rede pública, da rede particular e cooperativa ou em instituições de educação e ou formação, reconhecidas pelas entidades competentes, determinando para o aluno o dever de frequência.» E além disto esclarece: «1 – No âmbito da escolaridade obrigatória o ensino é universal e gratuito. 2 – A gratuitidade prevista no número anterior abrange propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, frequência escolar e certificação do aproveitamento, dispondo ainda os alunos de apoios no âmbito da acção social escolar, nos termos da lei aplicável. 3 – Os alunos abrangidos pela presente lei, em situação de carência, são beneficiários da concessão de apoios financeiros, na modalidade de bolsas de estudo, em termos e condições a regular por decreto-lei.»

12 E então — insista-se finalmente — como é possível que partidos políticos democráticos e Sociedade Civil se mantenham e manifestem, por tanto tempo, conformados com esta contumaz violação de “direitos e liberdades fundamentais” pelo Estado português? E com uma escandalosa discriminação negativa do “direito social universal à gratuitidade do ensino obrigatório” dos pais e alunos das escolas privadas, no interesse ideológico de um monopólio estatal anti-democrático e inconstitucional?