A União Europeia voltou. Pelo continente, os dados indicam uma diminuição da abstenção,

depois de nas últimas eleições se ter atingido o mínimo histórico de participação. Os dados provisórios apontam para um recorde de 20 anos nesse campo. Isso deve deixar-nos satisfeitos, porque significa uma vitória da democracia. Numa análise mais subtil, parece ser também uma vitória da ideia de União Europeia, depois de anos difíceis em que a sua subsistência esteve em perigo.

Se os resultados da participação parecem indicar que os europeus continuam a querer sê-lo, não menos nos parecem dizer que querem sê-lo de outra maneira. Pela primeira vez, os dois maiores partidos, representantes do centro-direita e do centro-esquerda, não conseguirão somar-se numa maioria parlamentar. Forças historicamente minoritárias, como os liberais e os ecologistas, mas também a direita eurocética, saem reforçadas das urnas e parecem dispostas a vender caro o seu apoio a uma qualquer solução. Nos próximos meses, assistiremos a uma curiosa negociação de lugares e programas políticos para a próxima Comissão, mas também no Parlamento, no Conselho Europeu e no Banco Central Europeu. Esta nova fragmentação pode marcar o início de uma verdadeira ágora europeia, com as grandes decisões a serem finalmente negociadas fora de gabinetes e trazidas para o espaço público de debate.

Essa seria uma reforma estrutural importante. A União Europeia já é mais do que uma mera união de Estados, nem que seja como resultado do (complexo) quadro institucional que foi estabelecido no Tratado de Lisboa. Ainda assim, a teia política e burocrática que rodeia qualquer decisão é ainda tida como distante e absolutamente incompreensível por aqueles que se destina a servir. Uma grande parte dos eleitores que na última semana se deslocou às urnas para dar um voto de confiança ou de aviso à União não o fez por discordar dos critérios necessários para obter uma maioria qualificada, por querer uma política de concorrência mais protecionista ou por achar Manfred Weber o homem certo para liderar uma comunidade de 500 milhões de pessoas na próxima legislatura; fê-lo apesar disso. Burke escreveu há muito sobre perigo de uma sociedade que, em vez de se fundar nas relações de confiança e afeto entre os seus membros, se organizasse do topo para a base – mesmo que na forma de uma burocracia benevolente e não propriamente numa ditadura sanguinária – por nessa se esbaterem rapidamente os mecanismos de responsabilização dos que decidem perante aqueles que são destinatários das decisões.

Tinha toda a razão. Não há poder justo e legítimo sem uma comunidade que o sustente. Esse é o problema do projeto europeu, sobretudo a partir de Maastricht, mas essa foi também a solução que surgiu nos últimos anos. Na última década, a Europa enfrentou todo o tipo de problemas que seriam suficientes para pôr em causa a existência de Estados consolidados, à exceção de um conflito armado dentro das suas fronteiras: houve uma crise financeira brutal, a ascensão de movimentos políticos extremistas que pretendiam derrubá-la e a declaração de secessão de um dos seus territórios. Ora, a União Europeia não é, nem deve ser, um Estado. Os seus mecanismos para responder a este tipo de criações eram inexistentes ou gravemente disfuncionais, de tal forma que não deveria ter sobrevivido à sucessão de golpes.

E pur si muove. As várias crises e a ameaça de Brexit em particular levaram a um ressurgimento das apreciações positivas da União Europeia. Os estudos de opinião continuam a mostrar que poucos se sentem confortáveis com a democracia burocrata de Bruxelas, mas menos ainda se querem ver livres dela. Os europeus aperceberam-se de que, durante uma tempestade, sempre se vai estando melhor dentro de casa, mesmo que não seja uma mansão de sonho. As forças eurocéticas moldaram-se para o colaboracionismo, abandonando desejos de implosão em troca de mais populares propostas de reforma. Continua a faltar, no entanto, o elemento burkiano: a comunidade. Os temas europeus são tidos nacionalmente como sensíveis ou simplesmente ignorados. O discurso político, em geral, raramente é pedagógico e normalmente depende de um conhecimento mínimo prévio daquilo que é discutido. A política europeia torna-se assunto a cada meia década, apenas por uns meses e de forma circunstancial. Qualquer campanha de duas semanas é à partida inútil, condenada ao risível, porque não é aí que verdadeiramente se estabelecem e discutem posições – nem nenhuma eleição se ganha como se fosse um exame de cultura específica para o cargo que se quer desempenhar. Uma discussão politicamente útil dos temas relevantes para o Parlamento Europeu, como qualquer outra assembleia, é um processo especialmente gradual, em que posições se vão sedimentando ao longo da legislatura e estão já estabelecidas nos meses que antecedem o voto.

O desafio passa por criar essa comunidade, capaz de escrutinar e ter opinião sobre o quotidiano de Estrasburgo como tem sobre Lisboa, Berlim ou Paris. Não é impossível que resulte: a propósito da diretiva relativa aos direitos de autor, foi possível desencadear um curioso sistema de responsabilização direta dos representantes ao Parlamento, gerando considerável interesse dos mais jovens, tipicamente os mais desinteressados das decisões europeias. A verdade é que essa comunidade de cidadãos europeus devia ter antecedido as instituições que hoje nos governam. É, como muita da construção europeia, um processo em que o encadeamento lógico se inverteu e por isso se tem de correr atrás do prejuízo. O esforço conjunto passa por todos, dos políticos à sociedade civil, passando pelos média. A melhor maneira de evitar as ridículas campanhas europeias a que temos assistido é fazê-las durar cinco anos. Do início ao fim da legislatura. Falhando, não se vê como possa sobreviver esta forma de União.

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