Em plena era Brexit e num tempo marcado pela dúvida, com legiões de imigrantes a tentarem chegar vivos à Europa, e tantos outros acontecimentos dramáticos a gerarem uma escalada de protestos, numa vaga de contestação que abrange todo o espetro político partidário de todos os países europeus, vale a pena voltar à génese da União Europeia.

Konrad Adenauer, Alcide de Gaspieri e Robert Schuman foram, entre muitos outros, os fundadores da construção europeia. Todos eles se revelaram grandes entusiastas, mas acima de tudo líderes visionários e humanistas. Winston Churchill, que pertence ao grupo de 16 pioneiros, foi um dos primeiros líderes com impacto mundial a falar da criação dos “Estados Unidos da Europa”. Churchill acreditava que após a Segunda Guerra Mundial só poderia voltar a existir paz se houvesse união. Estava certo. Aliás, estavam certos todos os que se empenharam em eliminar as ‘doenças europeias do nacionalismo e do belicismo’ que tantas vítimas fizeram nos anos de guerras e sucessivos conflitos.

Voltar à biografia de três dos grandes construtores da União Europeia é voltar àquilo que os motivou e ao espírito que presidiu a uma união que parecia impossível de tecer. Basta recuar aos tempos do pós-guerra, ao cenário de escombros e devastação que ficou tatuado na memória de todos os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, para perceber as feridas profundas que deixou nos povos e nas famílias dos países envolvidos.

Era impensável sentar à mesma mesa alemães e franceses. Todas as famílias francesas e alemãs tinham sido tocadas pela guerra, muitas tinham perdido muitos dos seus ou assistido à morte de compatriotas inocentes, mas Konrad Adenauer, o primeiro Chanceler da República Federal da Alemanha, que se manteve à frente do novo Estado alemão entre 1949 e 1963, foi capaz de mudar a história da Alemanha e da Europa.

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Liderou um complexo e sensível processo de reconciliação com a França e as medidas da sua política externa foram estratégicas para resgatar dois povos que se tinham tornado arqui-inimigos. A ação do Chanceler alemão revelou-se um pilar essencial na construção de uma nova Europa. Em 1963 Adenauer e Charles de Gaulle assinaram um Tratado de amizade que marcou uma viragem radical e histórica. Começou ali o processo de integração europeia.

Entre 1945 e 1953, também Alcide De Gaspieri, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros de Itália foi uma peça chave na construção de uma nova Europa. Mediador da paz inspirado num ideal de democracia e liberdade, De Gaspieri foi o autor de sucessivas iniciativas para a unificação da Europa Ocidental. Envolveu-se na realização do Plano Marshall, o célebre Plano de Recuperação Europeia, e estreitou os laços económicos com a França e outros países europeus. A sua ação e a sua motivação foram vitais na construção da paz e da prosperidade no continente europeu.

Robert Schuman, considerado o arquiteto do projeto de integração europeia, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros francês entre 1948 e 1952 e também o seu entusiasmo e a sua visão humanista ficaram plasmados na unificação da Europa. Em colaboração com Jean Monnet, consultor económico e político francês que dedicou toda a sua vida à causa da integração europeia, elaborou o famoso ‘Plano Schuman’ e apresentou-o publicamente no dia 9 de Maio de 1950, fez agora 69 anos. Esta data ficou para sempre marcada como o dia em que nasceu a União Europeia.

O parto não foi fácil e o nome que deram ao recém-nascido projeto também não foi este pelo qual agora o conhecemos, mas foi graças ao Plano Schuman que passou a haver uma gestão e um controlo conjuntos da produção do carvão e do aço, as duas matérias-primas fundamentais para a produção de armamento. A ideia fabulosa que permitiu a união resume-se, de uma forma grosseira, do seguinte modo: se eu preciso do teu aço e tu precisas do meu carvão para produzir armamento, temos mesmo que nos entender e não nos podemos declarar guerra.

Gosto de voltar a este ponto inaugural porque apesar de estarmos a falar de matérias-primas para produzir armas, foi graças a este espírito de interdependência que nasceu um espírito mais elevado de entreajuda. E foi graças a matérias para produzir materiais bélicos que se conseguiu fazer a paz. O paradoxo é grande, mas na realidade este passo permitiu criar uma força verdadeiramente unificadora que deu origem à União Europeia.

A história desta enorme e ambiciosa construção de uma Europa unida está cheia de avanços e recuos, complexidades e dilemas, desafios e braços de ferro, frustrações e perplexidades, conquistas e perdas, mas é inegável que nos tem levado a todos muito longe. E tem-nos permitido concordar e discordar com liberdade, mas também circular livremente entre países e comprar e vender produtos diferentes com a mesma moeda.

Goste-se ou não se goste dos contornos atuais da União Europeia, concorde-se ou não com a forma excessivamente burocratizada como evoluiu, aceite-se apenas parte ou toda a diversidade de que é composta, continua a estar na nossa mão contribuir para recentrar o espírito de união. Somos nós, cidadãos europeus, que decidimos o destino que queremos dar a esta Europa onde os nossos filhos e netos vão crescer.

As novas gerações de eleitores e decisores estarão fatalmente cada vez mais distantes dos pais fundadores e, por isso, importa recordar o que estava em causa quando os pioneiros se entusiasmaram com a ideia da paz, da liberdade e da prosperidade num continente massacrado por conflitos e guerras, minado de dores e de feridas por cicatrizar.

O voto de cada cidadão, em qualquer eleição, tem o poder de contribuir para mudar (ou manter) uma realidade, para transformar ou reforçar o sistema. Nas eleições europeias a abstenção é lendária e pode atingir proporções gigantes. É pena. Há 69 anos, quando a Europa estava em ruínas e todos sofriam ou se odiavam, a paz não chegava sequer a ser uma miragem. Graças ao espírito visionário, humanista e entusiasta de políticos como Schuman, Adenauer, De Gaspieri & Cia chegámos até aqui. Falo do espírito de união, por oposição ao espírito de desunião. Aos cidadãos cabe levar isto a sério e aos políticos também.