No fundo, as biografias que escrevemos de figuras públicas que nunca chegámos a realmente a conhecer são muito mais biografias de nós mesmos. De quem éramos antes de descobrir o biografado e de quem somos depois. Do que nos deu, de como nos transformou, de como, eventualmente, o abandonámos. Porque, se a nossa perceção sobre Vasco Pulido Valente mudou ao longo dos anos, não foi certamente porque VPV mudou – VPV não era dado a esse tipo de frescura. Nós é que mudámos.

Para um jovem aspirante a escritor e cronista, VPV teve, durante anos, o mais elevado dos estatutos possíveis na imprensa: o de razão de se comprar o jornal.

Primeiro na edição de sábado do DN, diluído entre outras boas razões: o DNA de Luís Osório e Pedro Rolo Duarte, o DN+ de Nuno Galopim, a crónica de abertura de João Lopes desmontando as imagens mais emblemáticas da semana ou as reflexões de Adriano Moreira sobre a política internacional. Depois, já num Público que ficava cada vez mais magro, resistindo como esteio e motivo daquele euro e tal entregue no quiosque todas as manhãs. O pretexto para, já que estávamos ali e ele só vinha na última página, desfolhar todo o jornal, parando aqui e acolá, como em suaves preliminares.

Durante anos, VPV representou para nós a crónica curta sempre certeira, infalível. A frase breve, o adjetivo implacável, a passada de tal modo certa que, no fim, nunca ficava uma palavra a mais nem outra por dizer.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mais profundamente do que isso, VPV foi ainda, na transição do século, a lucidez que nunca se deixou enganar pelo país cor-de-rosa do guterrismo, pelo barrosismo inflado e vazio e muito menos pela suposta sofisticação socratista, que, durante tempo, enganou tanta boa gente nas páginas dos jornais e na televisão (mesmo que hoje tudo façam por ninguém se lembrar muito disso).

VPV falou muitas vezes por nós e sempre melhor do que nós. Foi a definição daquele que não vai na cantiga. Foi o nosso desmontador de farsas pessoal e profissional – a munição que levámos, quantas vezes, para as tertúlias e debates: “viste a crónica do VPV”? “É como diz o VPV”. “Vai ler o VPV e depois conversamos.”

De certo modo, VPV foi o matulão da turma – e certamente nem ele alguma vez se propôs a semelhante missão. Escudou, durante anos, as costas daqueles indivíduos magrinhos, isolados no pátio, que, como ele, não iam na cantiga. Contra o coro dos acólitos que, há anos, deixam a caravana passar.

Mas, depois, VPV tornou-se outra coisa – aos nossos olhos, isto é. Talvez tenham sido demasiados anos de derrotismo e pessimismo. Começou a parecer só o aborrecido, o entediado, o desdenhoso, o tipo incapaz de uma pulsão, de se comprometer com uma convicção, o velho do Restelo de todos os velhos do Restelo, bem sentado, bem alimentado, bem protegido toda a vida, a olhar cá do alto para o povinho, a gentinha, que, no fundo, talvez desprezasse. A quem, por vezes, parecia não reconhecer um único talento, um pouco de inteligência, uma nesga de coragem ou atitude. Só um olhar bovino, com que caminhava rumo à inevitável catástrofe (o desaparecimento, a fome eterna, a anexação pela Europa – por aí).

E então, a extrema lucidez de VPV começou a parecer apenas o tédio indiscriminado que lançava sobre tudo, anulando todas as diferenças, tratando a todos por igual, um país irremediavelmente perdido desde antes de Eça, de onde só se safava Soares, o seu amigo dos salões.

Deixámos de o ler. De pagar o euro e tal. Os jornais continuaram a emagrecer e a fechar. Vieram os jornais digitais. VPV veio para o Observador. Nós viemos para o Observador. Não o voltámos a ler. O mais certo é ele nunca nos ter lido. O final feliz possível.

Mas há uma crónica de que nunca nos esqueceremos. A crónica de VPV sobre o tabaco, o papel dos cigarros na vida dele, no dia em que veio a lei da proibição do fumo em espaços públicos fechados. Dessa vez, não era o tédio, nem o desprezo, nem a descrença, nem o fatalismo a falar. Era uma crónica tão genial e certeira como sempre, mas iluminada desta vez por qualquer coisa que raiava a alegria. Era uma declaração de amor aos cigarros, a sua “pontuação dos dias” (citamos de memória).

Nesse dia, pensámos quão melhor escritor e cronista não teria sido VPV se acaso gostasse um pouco mais disto tudo.

Uns anos depois, deixámos de fumar.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).