O Estado ficou aos papéis no incêndio de Pedrógão Grande. Mas a classe política nem por isso. Desde a primeira hora da tragédia, o governo e a Presidência fizeram os possíveis para sacudir a pressão e abafar a discussão sobre as origens do incêndio, os erros operacionais e a descoordenação política. A versão oficial, pela boca de Marcelo, saiu definitiva: não havia nada mais que pudesse ter sido feito. Agora que os jornais desenterraram factos que contrariam essa versão, a história mudou. Afinal, Marcelo exige esclarecimentos. Afinal António Costa quer respostas cabais. Ainda bem. Mas que fique registado: a primeira intuição foi afastarem-se das responsabilidades e soltar informação que, escrutinada pela imprensa, se provou errada ou, pelo menos, muito duvidosa – sobre como tudo começou, sobre a coordenação dos serviços, sobre meios de combate ao incêndio.

Nada de inusual. O instinto de sobrevivência faz parte da vida dos partidos. E perceber isto é fundamental para entender o que aí vem quando se fala de apuramento dos factos sobre Pedrógão Grande: quanto mais esse apuramento depender dos partidos, menor será a independência das conclusões e menor será o esclarecimento público. É por isso que, entregue o processo ao parlamento, tudo indica que será pouco mais do que fomentar a ilusão de escrutínio. Afinal, a quem se entrega um dossier que se pretende inconclusivo? Ao parlamento, claro – um cemitério de reformas políticas e um palco de desentendimentos que nunca desilude na disponibilidade para espectáculos mediáticos.

A farsa já começou, sob coordenação da Presidência da República, que exige novas leis até às férias e pelos vistos determina o calendário legislativo da Assembleia da República (justiça seja feita a Passos Coelho, que se tem oposto às precipitações de Marcelo). Esta semana, os deputados despacharam numa tarde o que há dois meses não se resolvia. Será que, legislando assim, os interesses dos cidadãos ficarão melhor protegidos? Parece óbvio que não. Mas os dos deputados ficarão: votadas e aprovadas as leis, ninguém os poderá acusar de não terem feito do tema uma prioridade. As aparências são tudo.

A farsa, tudo indica, continuará na constituição de uma comissão independente a partir do parlamento. Sim, será composta por peritos – mas peritos escolhidos por partidos que têm interesses na matéria. Achar-se que uma comissão independente pode nascer da iniciativa dos partidos, que têm interesse em diluir as suas responsabilidades ou favorecer clientelas no sector da agricultura, é como acreditar que as vacas voam. Por exemplo, ainda as cinzas pesavam no ar e já Tiago Barbosa Ribeiro (deputado PS) punha as responsabilidades em Assunção Cristas, enquanto ex-ministra da Agricultura. É nesta gente que somos forçados a confiar para conduzir o processo de apuramento da verdade?

O pior da tragédia de Pedrógão Grande durou dois dias. Mas os eventos que se seguiram também não podem ser esquecidos: eles mostram a face de um regime esgotado, com políticos ansiosos por controlar o escrutínio público. Já se sabe como é: tudo passa e a história acabará daqui a umas semanas, quando Pedrógão Grande sair das manchetes – mesmo as mais terríveis tragédias têm um prazo mediático. É nessa impaciência popular que se refugia o regime, que sabe que para sobreviver basta esperar que a tempestade passe e cuidar das aparências. Sim, abriu o período de apuramento de responsabilidades. Mas, olhando para esta última semana, só os ingénuos poderão acreditar que, quando os factos se revelarem incómodos, alguma coisa se apurará.

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