A Proposta de Lei nº 34/XIII que “procede à definição e à regulação dos atos do biólogo, do enfermeiro, do farmacêutico, do médico, do médico dentista, do nutricionista e do psicólogo”, apresentada no dia 19 de outubro na Assembleia da República, é uma das piores leis que o atual Governo concebeu. Parece inócua, mas não é. Terá efeitos devastadores na coesão do SNS e na sua capacidade de contratar profissionais, no multitasking e no task sharing. Enquista as profissões, na medida em que tende a isolar as corporações e explicitamente impele à construção de guetos e impede partilhas de responsabilidades. Assentará num sistema, jurídica e profissionalmente complexo, de delegações de competências. É retrógrada. Baseia-se em conceitos de prestação de cuidados e de intervenções na Saúde que é contrária à moderna Saúde Pública. Não acrescenta nada à jurisprudência e ao entendimento já existente sobre o que cada profissional deve e pode fazer. É proteccionista e até poderá violar diretivas comunitárias sobre livre circulação de profissionais que queiram vir para Portugal, devidamente habilitados e que, chegados a Portugal, talvez não possam cá fazer o que poderia ser feito noutros Países da UE. A Lei tem definições de atos, muito limitantes nuns casos e demasiado abrangentes noutros, o que vai gerar focos, mais uns, de conflitualidade entre médicos e outros profissionais.

Há profissões de Saúde que ficam de fora, sem Ato, porque a opção foi tipificar os Atos das profissões que têm Ordem. Ora, essas são as que já têm a sua função definida nos Estatutos da Ordens e nem precisariam de mais legislação. Há leis e jurisprudência suficiente. Os tribunais sabem o que é exercício ilegal da Medicina, conseguem distinguir um Enfermeiro e entendem bem o que é um Farmacêutico, um Psicólogo ou um Nutricionista.

Há aspectos particularmente graves, tais como colocar fora da Lei, numa interpretação estrita do articulado proposto, os técnicos de meios complementares de diagnóstico e terapêutica que são licenciados vitais para o funcionamento do sistema de saúde. Os Fisioterapeutas, para só falar de um caso bem conhecido da população, ficam em que situação? Mesmo sem considerar os profissionais das terapêuticas não convencionais, cujo regime está tipificado em Lei que não os confunde com mais ninguém, tal como os Podologistas, ainda há o caso dos Técnicos de Ambulância e de Emergência, legalmente considerados como profissionais de Saúde, cujas competências, estruturadas em Decreto-Lei, passaram a ser inaceitáveis em face da Proposta de Lei agora apresentada. Em boa verdade, num entendimento abrangente, os Bombeiros e até os transeuntes que saibam e possam efectuar manobras de reanimação ficarão em risco de violar a Lei. E os cuidadores informais, a quem o Governo quer dar estatuto, farão cuidados sob delegação de quem? E todos os outros intervenientes na saúde humana, tais como os da área do ambiente, bioquímicos, etc.? E desde quando é que um Médico Veterinário não poderá ter competências de biólogo ou capacidade de decisão sobre alimentação humana?

Há muito que a Ordem dos Médicos exigia que o Ato Médico, previsto em legislação do SNS, fosse determinado em Lei que o regulamentasse. Tal nunca aconteceu, ponderados os argumentos, precisamente porque sempre existiu o entendimento de que a criação de barreiras ao exercício de outros profissionais de saúde, por via da Lei do Ato Médico, seria contraproducente para o sistema de saúde. O “novo” Ministério da Saúde, para não parecer que cedia aos médicos, inventou uma Lei de Atos Múltiplos, socialisticamente salomónica, enviou o diploma para AR e deu o assunto por concluído. Afinal, onde está a bondade da Lei? A contradição entre o preâmbulo da Proposta, onde se lê que haverá vontade em apostar nos “novos modelos de cooperação entre profissionais de saúde, no que respeita à repartição de competências e responsabilidades”, e o corpo do articulado é flagrante. Se a ideia era “enquadrar juridicamente os diferentes atos profissionais na perspetiva da salvaguarda dos superiores interesses dos utentes”, teria sido difícil imaginar Lei pior. O cinismo chega ao ponto de escreverem a intenção de promover o “conceito de equipas multidisciplinares em saúde e modelos de cooperação entre os vários profissionais de saúde, designadamente os biólogos, os enfermeiros, os farmacêuticos, os médicos, os médicos dentistas, os nutricionistas e os psicólogos, e outros profissionais de saúde como os técnicos de diagnóstico e terapêutica”, os tais a quem Lei pretende excluir.

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Em tempos idos, o Presidente Jorge Sampaio, avisadamente, bloqueou uma intenção legislativa, limitada ao Ato Médico, de um Governo do seu tempo. Percebeu o que estava em jogo e, na altura, fez bem. Alguns médicos não gostaram. Compreende-se. A maioria nem quis saber. Não tem sido por falta de Atos que as profissões não têm sido exercidas, os utentes atendidos ou os doentes tratados. Nem será por agora termos mais uma regulamentação que os recursos humanos em falta serão mais rapidamente repostos. Vamos é ouvir, com frequência crescente, “faça você que eu não posso. A lei não deixa”.

Para já, esta Proposta é apenas um texto demagógico, sem eficácia prática que não seja a de satisfazer clientelas e dar “coisas” que não custam dinheiro. Em suma, é mais uma Lei que o Governo agora propõe porque, na falta de substancialidade reformista, enche notícias com coisas inúteis mas vistosas. O mais importante, as carreiras, que já foram publicadas, em 2015, no Boletim do Trabalho e Emprego, ficarão para um dia de socialísticio, mais uma alvorada histórica, sem dívidas e dinheiro a rodos.

Ex-ministro da Saúde