Durante muito tempo, mesmo o que, à primeira vista, parecia mais difícil de perceber no percurso presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, acabava por fazer sentido. Como candidato, afinou a campanha para maximizar a independência e a disponibilidade que são fundamentais para o cargo: procurou simpatia, mas não quis criar expectativas; teve consigo a máquina do PSD, mas fez questão de aparecer sozinho.

A sua táctica durante o ano passado também teve razão de ser. O novo presidente, em Março de 2016, encontrou um primeiro-ministro derrotado nas eleições, mas com uma maioria parlamentar. O governo, embora dependente do PCP e do BE, prometia manter o país ligado ao pulmão monetário do BCE. Era importante que o presidente impedisse a maioria de o usar como bode expiatório de um acidente financeiro. E como notou um dos antigos líderes do BE, as congratulações ao governo funcionaram, até certo ponto, como um “condicionamento”. A margem de manobra presidencial era aliás grande. A maioria parlamentar e a oposição acusavam-se mutuamente de “radicalização”. Não estavam interessadas em dar provas desse radicalismo através de conflitos com o presidente. O que também lhe permitiu uma certa displicência em relação às oposições. Marcelo Rebelo de Sousa pôde, assim, aparecer, comentar, intervir — provavelmente, mais do que qualquer dos seus antecessores.

Mas eis o que, a certo momento, a táctica parece ter-se transformado em azáfama. O presidente passou a frequentar os noticiários com a voracidade sistemática de uma espécie de troll. E tal como as celebridades que a tudo reagem e tudo comentam, ei-lo um dia forçado a apagar e a desdizer algumas improvisações menos oportunas. Foi o que lhe aconteceu entre a entrevista de domingo passado e a conferência de imprensa de terça-feira. No domingo, o presidente apareceu aos jornalistas como um colega entusiasmado de António Costa, no limiar dos “factos alternativos” — ao ponto de o ex-candidato Sampaio da Nóvoa ter resolvido regressar por instantes ao palco para exigir respeito pelo líder da oposição. Na terça-feira, por contraste, o presidente surgiu de repente a dizer o que, nos tempos solenes e sibilinos do general Eanes, prenunciaria uma mudança política próxima (“não há governos eternos”).

Nada disto abalou o país. As intervenções anularam-se uma à outra, e foi como se o presidente, no fim, não tivesse dito nada. O perigo é óbvio: a comunicação presidencial ameaça tornar-se uma ginástica sem consequências, a não ser a de enriquecer os dossiers de quem, um dia, possa ter interesse em alguma campanha de apoucamento. Luís Fazenda já revelou as suas linhas gerais: “o presidente das piadas”, “o selfie made man”, etc. Foi um aviso: os partidos da actual maioria, quando precisarem, usarão tudo o que agora, por cálculo, deixam passar. É importante, por isso, que o presidente nunca chegue ao ponto de estar tão condicionado pelas suas infelicidades, que se veja forçado a evitar choques quando forem necessários.

Dir-me-ão: Marcelo Rebelo de Sousa aguentará, é “popular”. Sim, mas é uma “popularidade” de lua-de-mel. Não foi testada por divisões graves ou pelo tipo de corrosão político-mediática a que, por exemplo, o socratismo sujeitou o presidente Cavaco Silva. Nessas eventualidades, talvez o “afecto” dê jeito, mas uma certa gravidade institucional também.

Esta não é uma simples questão de decoro protocolar. O país precisa do presidente da república. As intermitências da maioria ou a subida dos juros podem, a qualquer momento, deixar-lhe o regime nas mãos. Já o disse uma vez, a propósito do selfie com Sócrates no Verão passado, e volto a repeti-lo: alguém que nos faça o favor de proteger o presidente.

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