Muita gente se interroga por que motivo reina um estado de guerra permanente na Esquerda portuguesa, uma guerra que desde o 25 de Abril atravessa também o próprio Partido Socialista, que ora existe em estado larvar, ora se manifesta de forma ruidosa, tocando as raias do fraccionismo, como agora acontece. Seguro e Costa representam os dois lados da barricada que divide ao meio o “socialismo democrático”. Mal contrastando pelas suas propostas governativas, convenientemente vagas ou então impraticáveis, os dois candidatos a primeiro-ministro distinguem-se todavia porque se pressente que Seguro tenderá a entender-se com a Direita, ao passo que Costa acarinha o sonho de unir a Esquerda sob a sua égide, ou pelo menos de captar nesse campo uma simpatia que possa vir a traduzir-se em condescendência parlamentar.

Este sonho é de realização impossível, em virtude da existência do PCP, um partido essencialmente estalinista que execra a “democracia burguesa”, encarada como um estádio transitório rumo ao “verdadeiro socialismo”, e que seria um inexplicável anacronismo não fosse o atraso económico, social e cívico do país justificar a sua sobrevivência.

O facto é que o PCP existe e resiste, e o facto é que, existindo e resistindo, a coberto de um falso verniz democrático, exerce uma força gravitacional sobre toda a Esquerda e Centro-Esquerda do país. Não é possível, entre nós, imitar o exemplo da Alemanha, onde sociais-democratas governam em coligação com cristãos-democratas; não é possível, neste cantinho lusitano, repetir o recente milagre sueco de uma aliança entre três formações de Esquerda, Sociais-democratas, Verdes e Esquerda Radical, que se uniram para derrotar nas urnas uma Direita que há oito anos se dedicava a privatizar fatias do lendário estado social sueco. Acontece que, na Alemanha, o SPD não corre o risco de ser apodado de apóstata ou reaccionário em virtude da sua ligação com a Senhora Merkel; e que na Suécia ninguém tem que recear pela subversão dos fundamentos essenciais da ordem sócio-económica e política vigente – por lá, ninguém sonha com “colectivizações” e “planos quinquenais”.

Por cá, nos anos noventa, uma minoria de marxistas, leninistas, estalinistas, trotskistas, maoístas, que antes de Abril vituperavam o “revisionismo” do PCP que o levara, alegadamente, a enjeitar alguns dos mais salutares princípios da ortodoxia doutrinária do comunismo, descobriram a iniquidade (ou inutilidade) da polícia política,  da censura e do Estado de “partido único”; não, porém, as perversões do estatismo nem a economia de mercado como condição da liberdade individual e colectiva, já para não mencionar as suas vantagens quanto à “riqueza das nações”. Essa minoria, retalhada em grupúsculos que se digladiavam ardorosamente, e que, como se tem visto, assim continuaram, uniu-se para vir a constituir-se em alternativa ao velho “centralismo democrático” do velho PCP com que em tempos rompera irrevogavelmente.

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Mas  o Bloco viu-se logo confrontado com o imperativo de demonstrar que era mais progressista em matéria de costumes – tornou-se o campeão das “causas fracturantes” (hoje praticamente esgotadas); que era tão ou mais zeloso no que toca à defesa dos direitos dos trabalhadores e ao combate à pobreza; e não menos exigente a respeito da criação de uma sociedade igualitária. Inteiramente desprovido de implantação autárquica e sindical, o Bloco perdeu uma enxurrada de eleitores e quase metade dos deputados, e, com a consequente agudização das rixas internas e o aumento das deserções, desagregou-se. Resta um simulacro de partido cuja irrelevância é penosamente disfarçada pela infinita boa vontade e paciência de um dos seus coordenadores, João Semedo. A outra coordenadora, Catarina Martins, esbraceja por prolongar a competição com o PCP, arvorando-se em consciência social do Parlamento.

Mas a atracção gravitacional do PCP não pára aqui. Atinge o Partido Socialista, ou, para ser mais exacta, a metade do Partido Socialista que vê em António Costa (a avaliar pelos resultados das federativas) o Messias que se autoproclama dotado de um especial talento para congregar e unir o que anda ou tem andado desavindo. A esquerda do PS interpreta este optimismo como a garantia de que, com Costa, os socialistas jamais farão alianças – ou conluios – com o Centro-Direita. O que resta do Bloco, para além da sua necessidade de afirmação esquerdista, está imprestável. Jerónimo de Sousa, inalterável, proclama todos os dias que o PCP só assumirá “responsabilidades” quando o povo manifestar a sua vontade soberana nesse sentido. Ou seja, nunca aceitará uma parceria – parlamentar ou outra – em que seja subalterno. Jerónimo pode conversar e certamente tem conversado. Mas um verdadeiro diálogo pressupõe uma considerável sintonia entre as partes.

“Os velhos hábitos custam a morrer.” Ainda ontem à noite (16.9), Octávio Teixeira, entrevistado na SIC-Notícias, defendia que a “nacionalização” do BES teria sido uma solução a todos os títulos mais profícua do que o empréstimo concedido pelo “grupo de resolução” formado por bancos privados. Teixeira ressalvou, é certo, que seria uma “nacionalização” provisória, destinada a recuperar o Banco para depois o devolver ao privado. Mas não é esta a posição oficial do PCP, que defende sem rebuço a “nacionalização”, ponto final. O Estado dotar-se-ia de um poderoso instrumento de intervenção económica, ao apoderar-se do segundo maior financiador das PME’s portuguesas. É transparente a inspiração colectivista que, importada da União Soviética, assolou Portugal em 1974-5. Com quem poderá Costa dialogar à sua Esquerda? Como unirá as duas metades do PS e o PS com ela?

Os dilemas de Seguro não são menos excruciantes. Descobriu nos últimos tempos que os portugueses andam alienados da política e que é preciso reconquistá-los, se quisermos ter uma democracia que não seja meramente nominal. Embandeirou em arco as “primárias” no PS como um grandioso passo naquela direcção, sem se dar conta, como logo notou Pulido Valente, de que estava a criar no partido duas legitimidades contraditórias. Todavia ambiciona mais, e acenou – totalmente fora de horas – com uma lei eleitoral talhada para aproximar os eleitores dos eleitos – uma velhíssima bandeira eleitoral que já vem do constitucionalismo monárquico oitocentista e da qual se tem falado repetidamente desde o 25 de Abril para cá. Mas o instinto deu-lhe o mau conselho de recomendar uma redução do número de deputados. Costa acusou-o imediatamente de estar a fazer uma “declaração de guerra aos partidos à nossa esquerda e um favor ao PSD”.

Seguro já passou por amarguras semelhantes. No ano passado, quando o Presidente da República o sentou a uma mesa com delegados da maioria, Mário Soares, aplaudido pela esquerda do partido, ameaçou-o de uma “cisão” no caso em que fizesse um acordo com o PSD-CDS. Seguro, porém, promete que, em sendo primeiro-ministro, arranjará parceiros, presume-se que para ampliar a sua legitimidade. Está porém proibido de os ir buscar à Direita, e não tem qualquer crédito da Esquerda. Para onde ou quem se virará?

Enquanto o PCP polarizar a política portuguesa à Esquerda, o Bloco não poderá colaborar com o PS – sob pena de ser acusado de “direitista” – e o PS não poderá ligar-se ao PSD a não ser em casos sem importância política, para inglês ver – sob pena de ser acusado de reaccionário. É precisamente na paralisia da Esquerda à sua Direita que o PCP aposta. Tudo bem, enquanto todos continuarem inimigos como dantes.