1. É bom recordar estas coisas e eu lembro-me bem delas. Nos idos de 1974 o PPD começou por ser uma resposta. Dada por aquele corpo intermédio da sociedade que na altura exista em Portugal e começara a ganhar consciência cívica e política com a Ala Liberal, a Sedes, a JOC e a JUC, encontrando diversos espaços de intervenção. Pessoas que não se reviam numa solução marxista nem em projectos comunistas ou socialistas. Profissionais liberais, médicos, advogados, economistas (retive o brilho de muitos deles quando, já deputados, se sentaram no hemiciclo de S. Bento) mas também pequenos proprietários, pequenos comerciantes. Uma malha forte de gente já com uma independência material ou profissional e vontade de intervir. O PSD começou por isto e por se implantar nacionalmente, primeiro no norte, depois, país fora. E quando procedeu à sua própria exteriorização, ao contrário dos outros partidos que iam nascendo de dentro para fora, ela ocorreu de fora para dentro e sem uma ideologia pré-existente. Doutrinariamente nasceu assim uma impressão digital originada pelo cruzamento do que fora o pensamento da Sedes, do que era a doutrina social da Igreja, do que significara a Ala Liberal, à mistura com tresmalhados do antigo regime, sem expressão, nem influência. Foi essencialmente esta mescla — e não um ideário, uma ideologia, uma cartilha — que alimentou, e mobilou, o pensamento político dos primeiros homens do PSD.

E havia Francisco Sá Carneiro. Ou melhor, havia sobretudo – ou muito — Sá Carneiro. Teve a mestria de ir tecendo e levantando o que hoje poderíamos apelidar de social-democracia portuguesa, na altura muito marcada pelo humanismo, o personalismo, pelo primado da pessoa. Se de um ponto de vista ideológico isto pode surgir como uma síntese relativamente modesta, ela não é porém senão um razoável resumo daquilo que era o genuíno pulsar desse vasto grupo que as circunstâncias e o tempo transformariam num bravo, robusto e bem sucedido partido político. Uma boa parte dos portugueses revia-se nessa “resposta” e identificava-se com esse espírito. E rendiam-se — quando se rendiam — a Sá Carneiro, que interpretou o que de bom ou muito bom havia no país, amalgamando, Portugal fora, energias e vontades. E dividindo, bom sinal.

Assisti a tudo com a sorte dos meus postos de observação serem particularmente férteis: redações dos jornais, Parlamento, rua, sedes partidárias, entrevistas. E o “terreno”, claro, que nada substituía porque o “terreno” era de onde olhávamos o “povo” a olhar os políticos. Em campanhas, discursos, caravanas, comícios, por aí fora. Era tudo novo, parecia-nos tudo exaltante mesmo que não fosse, como não foi. Mas também me lembro que, durante muitos anos, a qualidade dos dirigentes do PSD, a fibra da sua militância, o carácter de Francisco Sá Carneiro e a explícita preferência pela reforma em vez da revolução e pela ruptura como instrumento político, conferiram um invejável estatuto ao PSD. Nascia uma marca. Nada (lhe) foi fácil, a começar por não ser um partido de esquerda (ainda hoje, que vergonha, o maior pecado que alguém pode cometer nesta desgraçada pátria) e a rematar na índole tumultuosa do próprio PSD, factor distintivo que sendo real, a natureza humana por si só não explica. A verdade é que pouco me lembro de um PSD sereno e muito me recordo de aparatosas vicissitudes numa caminhada quase sempre acidentada: crises, doenças graves, bater de portas, dissidências, zangas, amuos, saídas e regressos, saídas sem regresso, mudanças de liderança, mudanças de rumo.

Mas o PSD convencia, mas o PSD reformava, mas o PSD ganhava. Ganhou, obteve maiorias absolutas, fosse coligado — como ocorreu com a primeira AD de Sá Carneiro em 1979 — ou aventurando-se sozinho, como em 1987 e 1991 com Cavaco e as duas maiores maiorias absolutas destas quatro décadas.

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Não é dizer pouco: alguma coisa de forte teria que estar ancorada nas vontades do militante e do eleitor, explicando esta concreta escolha eleitoral; algo se cruzaria entre o que o PSD propunha e representava e aquilo que grande parte do eleitorado entendia ser melhor para o país.

2. Não sei que terá sido feito de tudo isso, mas escusado será dizer que hoje se vive um ocaso. Triste como todos os ocasos, mas não o único pois não se pode desligá-lo da actual mediocridade da classe política; da representação parlamentar que a reflecte e amplia; da perda gradual de poder de convocatória dos partidos, da sua falta de atractivo; da falta de qualidade da nossa democracia, anquilosada e doente, incapaz de se regenerar, ao menos de se auto-analisar. Não, não é só o PSD, mas julgo ser particularmente o PSD. Gastou-se? Desgastou-se? Deixou-se capturar pela sua natureza de “partido tradicional” quando os ventos reclamam outra vida? Houve um deslizamento da sua capacidade de comunicar como aqueles deslizamentos de terras? Dificuldade em criar um discurso com uma arquitectura que traduza a complexidade dos tempos? Tornou-se politicamente incredível ao ponto da direcção política não ter conseguido um candidato presidencial a seu gosto? De não ter “achado” candidatos a Lisboa e ao Porto (para só citar estes dois casos de falhanço convocatório)? De ter sido“obrigado” a escolher Hugo Soares porque o que aí vinha era “bem pior”?

O PSD perdeu o fôlego, a fibra, o norte? O PSD perdeu o quê, mesmo tendo ganho as últimas eleições?

3. Os anos de chumbo que Pedro Passos Coelho levou às costas, com os cofres vazios e cercado por vários graus e géneros de manipulação, tiveram dois efeitos antagónicos: por um lado levaram-no a ele, Passos, e ao país, a bom porto — o primeiro ganhou as eleições e o segundo ganhou contas certas e credibilidade interna e externa; por outro lado, deixaram um travo assaz amargo nos bolsos e nas memórias que António Costa e a extraordinária geringonça aproveitaram como se fosse o último gesto político que lhes restasse: com volúpia, mentira e vertigem.

Recorrendo à mais voraz das manipulações, fizeram crer que havia má e boa austeridade e que o PSD, aplicando e impondo “intencionalmente” ( as aspas são minhas) a má, causara sacrifícios desnecessários aos portugueses por culpa do seu líder. Resta que o PS, o seu chefe, o seu governo e os seus joviais companheiros de estrada, vivem hoje em grande parte amparados nos frutos da aplicação dessa austeridade. Respirando pela folga de oxigénio que ela deixou, permitindo reversões, aumentos e outros brindes que os nossos netos pagarão.

Mas o certo é que algum anátema da governação PSD/CDS fez caminho: por mais básico que também pareça, há gente que acredita que Costa faz bem e Passos fez mal. Tão simples e linear quanto isto. Acredita até que foi o PSD ou a “direita” quem chamou a troika e escolheu a dieta, mas tem de se continuar dizer e escrever, cem vezes, mil vezes, desmentindo a conveniente mentira. Pelo menos quem ainda não se tiver demitido de alguma decência e guardar um resto de seriedade na distinção entre a verdade e a mentira.

Não sei como acabará a geringonça nem é isso que agora me interessa — para olhar e zelar por ela, lá está um omnipresente Presidente. E mesmo que agora pareça menos afeiçoado (à geringonça), ainda a mima o suficiente para ela continuar a sentir-se incólume (a tudo).

Também não me interessam aqui hoje as trafulhices miseráveis do PSD e dos seus caciques, que muito envergonham qualquer um, mas de tal modo porém pisadas, repisadas e ampliadas que se julgariam exemplo único na vida partidária. Hélas, não são. (Não é desculpa para a feia miséria, mas basta atentar no eloquente silêncio socialista a respeito das “facilidades” caciqueiras na caça aos votos para se perceber que só as formas de caciquismo variam.)

Quanto às autárquicas sigo-as por obrigação profissional. Serão o que forem. E como cidadã distanciei-me de Lisboa a partir do momento em que percebi que as direitas, não tendo compreendido que Fernando Medina era derrotável, nem discorriam, nem agiam como tal. Ter-se-ia precisado de uma vitória. Ela teria sido possível. Foi um erro. E uma pena.

4. Interessa-me Passos Coelho, uma espécie de mistério, embora – reconheço — a palavra seja grandiloquente. Não se percebe nem se justifica o (aparente) desbaratamento do seu invejável capital político, acumulado pelo que foi capaz de fazer no país e pelo país. Sem lhe ocorrerem estados de alma , desistências ou tentações eleitoralistas para alterar o acerto e o rumo da governação, o que não lhe impediu nova vitória no fim do pesadelo troikiano. Só isso bastaria para uma assinatura.

Mas agora há, como dizer?, uma teimosia, uma persistência que já não cabem na definição do “ele é assim e não muda”; ou foi “assim” que ganhou sempre. Talvez. Mas o mandamento já não parece servir o tempo presente que não é de governação mas de oposição. O discurso deixou-se espartilhar no permanente anúncio da desgraça, o combate baseia-se em certezas que não provaram sobre medidas políticas alheias; a visão toldou-se de previsões arriscadas de fins prematuros. Há como que um desacerto: Passos Coelho age como ex-primeiro-ministro no palco da oposição onde deveria ser o seu actor principal. Quem aí tem estado é muito o ex-chefe do governo e pouco o líder da oposição. Não é nada a mesma coisa. O primeiro deveria resguardar-se, o segundo, vestir a pele apropriada.

O país não precisa de dois primeiros ministros a degladiarem-se mas de um líder da oposição a marcar, como no futebol — e no caso vigente, a marcar impiedosamente – o primeiro-ministro. Precisaria, na oposição, de outra postura, iniciativas que surpreendam, bons temas, mentes com a percepção do estado do mundo, gente mais nova, inovação, janelas abertas. Deixando em pousio e bem preservadas as qualidades e características específicas que fizeram de Pedro Passos Coelho um chefe de governo que fará história, para o caso de voltarem a ser de novo precisas.

Pode ser que eu me engane, pode ser que “ser sempre igual a si mesmo” compense largamente; pode ser que a estratégia dê frutos quando for tempo de colheita.

E pode ser até que por de trás da montra da media e do verbo saturante de comentadores e comentários, haja uma parte do país que continue a rever-se na constância, sentido de Estado e seriedade de Passos Coelho e não tenha desistido dele, apesar da sua prestação ser hoje quase inversamente proporcional aos anos de S.Bento. (Aliás a pergunta mais interessante a fazer seria a de tentar perceber se já “se” desistiu de Passos Coelho. Perceber mesmo: furando a muralha dos ecrãs, passando a floresta do comentário saindo do perímetro da geringonça, ignorando a desinformação, ouvindo o país e não quem os vigilantes da geringonça consentem que se ouça.)

E pode também ser que o PSD não se ressinta deste tipo de oposição. Refiro-me ao PSD de Passos Coelho. Há outros PSDs, sim, mas deles apenas se sabe que conspiram. Ignorando-se de momento aquilo que exactamente eles propõem — e nesse caso aconselharia a troca de quem está, por quem conspira. Sabe-se apenas que cultivam a ilusão pueril mas pronta a servir de que, com eles “lá”, tudo mudaria. Ou que quando as coisas vão “mal” basta apear a liderança para logo a seguir o partido cavalgar dez pontos nas sondagens.

Parece mentira mas é verdade.

5. Seja como for, ocorra o que ocorra, teria sido muito bom poder vir a contar em Outubro com algumas notícias políticas. Boas notícias. Fortes como vitórias. Vinham a calhar à direcção do PSD e ao próprio PSD; ao CDS e à sua actual liderança; às direitas que não militam em partidos mas se interessam pela política ao serviço do país; aos portugueses que não se revêm na ficção socialista mesmo que as sondagens digam que eles não existem. Tudo isto contabilizado, não seria pouca gente.

Por isso se estranha tanto, que tão pouco se tenha pensado nela.