O “czar” russo Vladimir II e o “sultão” turco Erdogan I encontram-se praticamente em estado de guerra, pelo menos ao nível da retórica. Se um incidente militar equivalente ao derrube do avião militar russo pela força aérea turca tivesse lugar no séc. XIX, não haveria dúvidas de que iríamos assistir a mais uma guerra entre os impérios russo e otomano.

Porém, por enquanto, a Rússia limita-se a castigar a Turquia com duras sanções económicas, que provocarão fortes prejuízos aos dois países: calcula-se que na ordem dos 40 mil milhões de euros. Moscovo está mesmo disposta a suspender as exportações de gás e petróleo para a Turquia.

As sanções russas contra as empresas turcas estão também a reflectir-se na vida dos comuns súbditos do czar que, de repente, passaram a saber, pela boca das suas autoridades, que os tomates, legumes e frutas turcas “nem sempre foram seguros para a saúde dos russos”.  Claro que ninguém consegue explicar durante quanto tempo os produtores turcos andaram a “envenenar” os cidadãos russos.

Para já não falar que muitos milhares de súbditos do czar deixarão de ir passar as férias de Natal e Ano Novo para as praias quentes da Turquia. Mas os russos estão dispostos a aguentar isso e muito mais para salvar o orgulho da nação.

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Faço aqui um parênteses para lembrar que, aquando das sanções dos Estados Unidos e da União Europeia contra a Rússia devido à ocupação da Crimeia, os dirigentes russos não se cansavam de afirmar que eram contra qualquer política de sanções. Em Outubro de 2014, Serguei Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros, declarou ao jornal norueguês Vedes Gang: “Por princípio, somos adversários de semelhantes métodos, consideramo-los contra-produtivos em todos os sentidos. O aumento da espiral de sanções conduz a um beco sem saída, não ajuda a solucionar os problemas, mas, pelo contrário, cria novos obstáculos na via da sua solução”.

Trata-se de uma mudança brusca da Rússia face ao papel das sanções? Só se poderá responder afirmativamente a essa pergunta se se acreditar na moralidade da política externa russa, tão apregoada pelos órgãos de informação desse país.

Além disso, o problema é que na crise russo-turca estamos perante dois dirigentes, Putin e Erdogan, autocráticos e autoritários, que põem a agenda política interna (ou seja, a sua imagem) à frente da política externa.  Isto certamente não facilitará a normalização das relações entre os herdeiros dos impérios russo e otomano, que se digladiaram durante séculos.

Tanto mais quando são retirados dos “baús propagandísticos” palavras de ordem de séculos passados. A Igreja Orodoxa Russa lembra-se agora que o Templo de Santa Sofia deve deixar de ser museu para passar a ser novamente um templo ortodoxo, ao mesmo tempo que os islamitas exigem que esse museu volte a ser uma mesquita. Na Duma Estatal (Câmara Baixa) do Parlamento Russo, levantam-se vozes para que a “Cidade Czar” (Constantinopla, hoje Istambul) seja conquistada pelos russos, devendo-se fazer o mesmo à Síria, porque lá andou São Paulo, e a Antioquia. Recentemente, um mufti (líder espiritual muçulmano da Rússia) propôs a Vladimir Putin que alargasse a operação na Síria até Israel e à Arábia Saudita.

É difícil imaginar os dirigentes turcos a apresentarem um pedido público de desculpas pelo derrube do avião russo e a morte de um dos pilotos. Isso seria um rude golpe na sua imagem interna. Tanto mais que a acção de Ancara não foi alvo de condenação da NATO e até recebeu o apoio, por exemplo, dos dirigentes ucranianos, que esperam aproveitar a crise russo-turca para resolverem alguns problemas económicos e políticos. Erdogan tem também noção da importância da Turquia para a Europa e os Estados Unidos e utiliza esse factor nas relações com a Rússia.

Se Putin e Erdogan decidirem apoiar a escalada do conflito, ainda têm muito por onde pegar, mas se a Turquia chegar ao ponto de fechar os estreitos que ligam o Mar Negro ao Mediterrâneo aos navios russos, isso equivalerá a uma declaração de guerra.

Uma coisa é certa: este conflito veio dificultar ainda mais a criação de uma coligação internacional na luta contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Possibilidade que parece cada vez menos real se tivermos em conta que os vários jogadores têm interesses muito diferentes nessa região.

P.S. Os camionistas russos têm lançado fortes acções de protesto contra a cobrança de portagens em algumas estradas russas. O movimento alarga-se a várias regiões do país, tratando-se do primeiro que, na era de Putin, tem não só reivindicações económicas, mas também políticas, como o castigo dos criadores do novo sistema de portagens “Platon”.