Rosa Matos Zorrinho tem, tudo o indica, um bom currículo e boas qualificações para ser secretária de Estado da Saúde. Nada a dizer.

Nada a dizer? Nem por isso. Na verdade, tem um apelido que faz franzir o sobrolho: Zorrinho. O apelido do marido, Carlos Zorrinho, antigo governante do PS, hoje eurodeputado socialista.

Para Rosa Matos Zorrinho, recordar este parentesco é porventura uma injustiça. Em contrapartida, para quem segue a dança de cadeiras no governo de António Costa – e já vamos em 14 mudanças, 12 de secretários de Estado, duas de ministros – é mais um sinal de uma espécie de governo “entre família e amigos”.

Temos dois ministros que são casados: Ana Paula Vitorino, ministra do Mar, e Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna. Temos uma secretária de Estado Adjunta, Mariana Vieira da Silva, que é filha do ministro do Trabalho, Vieira da Silva. Temos na Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais António Mendonça Mendes, que não é fiscalista mas é irmão de Ana Catarina Mendes, a mulher que toma conta do PS em nome de António Costa. Já a mulher deste governante, Patrícia Mendes, trabalha como adjunta no gabinete do PM.

Há mais casos de parentescos entre alguns dos actuais governantes e antigos ministros ou responsáveis socialistas, mas esses parentescos talvez não pesem tanto como o do círculo de amigos – em concreto, o dos amigos de António Costa. O mais recente a sentar-se à mesa do Conselho de Ministros foi Pedro Siza Vieira, mas entre os que são muito próximos de Costa há muitos, muitos anos é necessário contar também com Eduardo Cabrita. Os dois estiveram em Macau ainda na década de 1980 por indicação do actual primeiro-ministro. Eles e também Diogo Lacerda Machado, esse sim o grande amigo que, sem se sentar à mesa do Conselho de Ministros, tem sido conselheiro, consultor e negociador em nome de Costa, intervindo em dossiers da maior importância, como o da TAP. Sem esquecer Jorge Oliveira, ex-secretário de Estado para a Internacionalização, um dos que teve de se demitir por causa do Galpgate.

Jorge Oliveira, recorde-se, não se demitiu sozinho. Com ele também saíram do governo mais duas pessoas muito próximas de António Costa: Fernando Rocha Andrade, que começou a trabalhar com ele ainda no tempo em que era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares no governo de António Guterres, e João Vasconcelos, que trabalhara com o PM enquanto diretor da Startup Lisboa.

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Os três deviam ter-se demitido quando o caso das idas ao Europeu de França foi tornado público, mas só se demitiram quando o Ministério Público os constituiu arguidos. Ou seja, demoraram demasiado tempo a sair.

Não foram os únicos que António Costa manteve no Governo bem para lá do razoável. Aconteceu o mesmo com Constança Urbano de Sousa, a ex-ministra da Administração Interna cujo currículo político era ter trabalhado com António Costa na… Administração Interna. No final da terrível época de incêndios não foi só ela que se demitiu. Também se demitiu o presidente da Autoridade Nacional da Protecção Civil, Joaquim Leitão, um coronel que fora nomeado para o cargo com parecer negativo do Conselho Superior de Oficiais do Exército, um óbice que pouco pesou pois fora comandante do Regime de Sapadores Bombeiros de Lisboa quando Costa era presidente da Câmara.

Nesta altura cabe perguntar: se estes dois protagonistas não fossem tão próximos do primeiro-ministro será que tinham continuado em funções depois de Pedrógão Grande? A dúvida é legítima e lança uma sombra sobre muitas das escolhas feitas nas mais recentes nomeações para o Executivo, onde este padrão de proximidade, pessoal ou familiar, se acentuou. É como se o círculo se fechasse ainda mais em torno do líder do Governo, como se se estreitasse a sua capacidade de recrutamento, ou então como se se tornasse ainda mais evidente a sua preferência para se rodear dos que lhe são próximos.

Na verdade António Costa, nos anos em que foi presidente da Câmara de Lisboa, evitou os concursos para todos os directores de departamento e chefes de divisão, contornando a lei através do recurso ao chamado “regime de substituição”. Pormenor: alguns dos assim nomeados eram familiares de dirigentes socialistas, como Susana Ramos, directora do Departamento de Desenvolvimento Social da CML e mulher de Duarte Cordeiro, actual vice-presidente da autarquia. Ou Sara Gil, mulher de Marcos Perestrello, que foi também vice-presidente da Câmara e hoje é secretário de Estado da Defesa, trabalhou no gabinete da então vereadora Graça Fonseca, outra figura próxima de Costa que este trouxe para o Governo: é hoje secretária de Estado da Modernização Administrativa.

Esta Graça Fonseca, que se tornou conhecida por assumir a sua sexualidade, é a mesma Graça Fonseca que tem como adjunto Pedro Silva Gomes, um quadro (evito a palavra boy) do PS que foi condenado a pagar à Segurança Social subsídios irregularmente recebidos, um caso que se tornou público em 2010 quando já trabalhava com Graça Fonseca e que, passado todo este tempo, está agora como adjunto no seu gabinete, ganhando 3 455,78 euros.

Como todo este círculo é pequeno, e Portugal dizem que é uma apenas uma aldeia, Ana Catarina Gamboa, namorada de Pedro Nuno Santos, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, trabalhou no gabinete de Duarte Cordeiro, na CML por onde tantos passaram (ou rodaram?). O que não é difícil: só no actual mandato a Câmara de Lisboa vai contratar neste mandato 124 assessores, adjuntos, chefes de gabinete e secretárias.

Claro que há mais, muito mais (pelo que vale a pena consultar, por exemplo, o livro Os Predadores, de Vítor Matos, editor de Política do Observador) e o mal não é apenas do PS, de António Costa e da Câmara de Lisboa – o mal está bem disseminado pelos diferentes partidos, em especial pelo PSD, e, por estranho que possa parecer nestes tempos em que tanto se fala de transparência e de ética, é mal que não se dissipa, agrava-se.

O que justifica duas notas.

A primeira é mais política: se é compreensível que os governantes se rodeiem de pessoas da sua confiança, quando olhamos para acumulação de laços familiares e de amizade na equipa de António Costa saímos do que é normal. Mais: quando se está rodeado de próximos, com que independência se julga, com que distância se avalia, com que abertura se discute e se diverge? Fosse outra a distância de Costa a alguns membros da sua equipa e talvez as necessárias demissões tivessem chegado mais cedo. E até que ponto têm governantes escolhidos neste quadro margem de liberdade para existirem para além da sua dependência do primeiro-ministro?

Nenhuma forma de endogamia faz crescer as organizações, qualquer sistema que funcione como “clube de amigos” tende a fechar-se sobre si mesmo, a auto-proteger-se, a voltar as costas à realidade. Quando isso sucede à cabeça do Governo e do país pode desenvolver-se um autismo de que já tivemos sinais por mais de uma vez. O autismo auto-congratulatório do “2017 foi ano saboroso para Portugal“…

Por outro lado, e esta é a segunda nota, se é assim no topo do país, se é assim em muitas autarquias, se é assim em tantos e tantos serviços públicos, não devemos estranhar demasiado alguns dos contornos do caso da Raríssimas.

Não devemos estranhar o convite a Sónia Fertuzinhos para ir à Suécia, apesar de ser difícil perceber a motivação. Afinal continuamos em família, pois a deputada do PS é a companheira de Vieira da Silva.

E Vieira da Silva, como sabemos, nunca viu nada. Mesmo aprovando as contas da associação, mas seguramente (digo eu) sem os detalhes que só o tesoureiro conheceria em detalhe. Suponho também que nunca tenha visto, por exemplo, o BMW usado por Paula Brito e Costa – ou melhor, que nunca tenha reparado nele, pois aquele é o tipo de viatura habitual na alta administração pública, nem se dá pela sua presença de tal forma fazem parte da “paisagem” de quem se move nos corredores do poder.

A excepção, a verdadeira excepção, é quem sai e faz a denúncia, para mais dando a cara. Isso é que é raro – e é raro em todo o país. No país pequenino onde uma mão lava a outra e o exemplo vem de cima, onde tantas e tantas organizações se tornaram no feudo de famílias sem pudor de usarem dinheiros do Estado, é também bom não esquecer que tudo se passa num dos sectores da administração pública mais povoado de boys e mais permeável ao clientelismo e à compra de lealdade – a Segurança Social. Aliás as duas coisas vão juntas. Os partidos sabem que há poucos ministérios com tantos lugares para distribuir como os centros distritais da Segurança Social, e depois também sabem que não há muitos outros serviços onde a discricionariedade na distribuição de prebendas possa ser tão rentável eleitoralmente.

Ali já nada se estranha, porque tudo se entranha. Como está tristemente à vista.