É certo que a memória climática não é muito confiável mas o elevado calor deste Verão é sensível. Neste momento e nas semanas mais próximas, segundo a meteorologia, as temperaturas mais altas têm estado bem acima da média histórica e assim continuarão, como vem sendo o caso de forma mais ou menos continuada desde a grande tragédia nacional do incêndio florestal de Pedrógão Grande há quase dois meses. A hecatombe de vítimas mortais de Pedrógão não se repetiu, felizmente, mas o ar continua irrespirável no país e assim continuará enquanto não for restabelecida a confiança num governo estável e coerente.

As razões são múltiplas mas a principal é o facto de a actual «geringonça» partidária se ter recusado, obstinadamente, a assumir as suas óbvias responsabilidades políticas e porventura outras, como no caso do SIRESP, perante a incompetência generalizada do governo e dos órgãos estatais e para-estatais, sem excluir a falta de preparação especializada dos bombeiros, para lidarem com a tragédia dos fogos florestais. O «clima» não pode ser essa desculpa que o primeiro-ministro invocou desde o primeiro dia para depois desaparecer de férias no estrangeiro…

Com efeito, há muito que as estatísticas demonstram que Portugal é o único país do sul da Europa cuja área florestal ardida anualmente continua a aumentar enquanto diminui em todos os outros. Ora, o alegado «clima» não varia dessa maneira. Este ano a área ardida vai bater todos os recordes: já está em seis vezes o valor médio da última década! Ora, o eucalipto não pode ser a única explicação para isso – e, se o fosse, isso seria ainda mais inadmissível! A multiplicidade de causas é bem conhecida mas não faz os «títulos» da comunicação social. Em resumo, trata-se de descaso e incompetência generalizados ou pior ainda, como o citado SIRESP!

Quaisquer dúvidas a este respeito desapareceram nas semanas seguintes ao rebentar o caso, simultaneamente gravíssimo e caricato, do armamento roubado em Tancos. Uma vez mais, ninguém foi politicamente responsabilizado por um incidente desta natureza, que só demonstra a inanidade das pretensões militares do Estado português e dá razão aos que propõem a reconversão das forças armadas… por exemplo, na prevenção e no combate aos incêndios florestais! Assim, como as coisas estão, não temos nem uma nem outra, mas o primeiro-ministro, bem como os dois ministros directamente responsáveis pelo descalabro da administração civil e da militar, afastam como sempre qualquer consequência política!

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Ou seja, ninguém está de guarda ao fogo nem aos ladrões. Podia-se então esperar que os dois partidos que sustentam o governo socialista, ciosos do seu peso parlamentar, encostassem o governo à parede e o obrigassem, pelo menos, a assumir a responsabilidade política por anos de incompetência estatal e afastar os principais responsáveis políticos pelos desaires governamentais. Isso seria, porém, afectar a imagem – que a comunicação social erigiu em princípio e fim da sua actividade – do primeiro-ministro. A extrema-esquerda exibe, pois, muito populismo para fora, mas fica calada perante o que está a acontecer sob os olhos de todos.

A razão é evidente. Os altos princípios proclamados pelo PCP e pelo Bloco são apenas para as câmaras de televisão, mas não alteram em nada a fidelidade canina da extrema-esquerda ao poder que conquistaram graças à falta de votos e ao oportunismo constitucional do PS. Mas que ninguém se convença que os tripés da geringonça farão cair o Governo e precipitarão novas eleições. Jamais! Por isso, Portugal tem o Governo que tem, navegando entre a vaga feliz do turismo e as ondas perigosas da dívida crescente.

O Governo é, pois, estável e não seria o Presidente da República quem lhe pediria responsabilidades pela incompetência e falta de verdade perante os factos. Em contrapartida, não existe nem há qualquer probabilidade de vir a existir um governo coerente, isto é, um governo com uma política consistente que não se limitasse a aproveitar o lado bom da conjuntura internacional a fim de esconder as consequências da falta de coragem e de competência para lidar com os problemas de fundo da sociedade portuguesa. Não admira, pois, que reine a falta de confiança em tal «geringonça» e no conjunto dos seus actores!

Segundo o próprio Governo se gaba, o que conta são as sondagens. E com efeito, Portugal tornou-se num daqueles países, cada vez mais numerosos, onde a tendência crescente para a abstenção eleitoral leva a que os vencedores das sondagens tendam habitualmente a ganhar as eleições com percentagens de representatividade muito baixas em relação ao corpo eleitoral. O jogo político-partidário transformou-se assim, pouco a pouco, na busca da melhor oportunidade para convocar eleições quando o partido do Governo está na alta das sondagens, aproveitando a boleia de qualquer facto ou número avulsos que lhe sejam favoráveis. As eleições autárquicas, porém, não servem para isso. A alta abstenção previsível não é de molde a tomar medidas a sério. O Verão continua demasiado quente para António Costa se arriscar ir a votos; assim o impasse político perdurará e o país perderá.