A Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) trocou informação com a supervisora do Luxemburgo, a Commission de Surveillance du Secteur Financier (CSSF), sobre a situação financeira do Grupo Espírito Santo (GES) antes de dar luz verde ao prospeto de aumento de capital do Banco Espírito Santo (BES).

O supervisor da bolsa portuguesa recebeu indicação da sua congénere luxemburguesa de que os problemas financeiros já detetados na Espírito Santo Internacional (ESI), holding não financeira do GES, não teriam impacto financeiro direto nas contas do banco. Esta indicação consta da deliberação do conselho diretivo da CMVM, presidido por Carlos Tavares, que aprovou o prospeto do polémico aumento de capital de 1045 milhões de euros do BES, segundo documento enviado à comissão parlamentar de inquérito à gestão do banco.

A supervisora luxemburguesa, que tinha a tutela holding financeira do GES, a Espírito Santo Financial Group (ESFG), revelou ter recebido uma carta da comissão de auditoria da ESFG onde era revelado que as contas da ESI “continham erros e passivos não registados na ordem de 1.000 milhões de euros”. A ESFG detinha a participação do Grupo Espírito Santo no BES.

“informações constantes da carta não tinham impactos financeiros diretos nas contas do BES, pelo que implicavam essencialmente um risco reputacional”

Numa conversa telefónica realizada a 16 de maio, uma responsável da CSSF esclareceu que a entidade considerava que as “informações constantes da carta não tinham impactos financeiros diretos nas contas do BES, pelo que implicavam essencialmente um risco reputacional”. Foi essa a informação dada pelo banco no prospeto do aumento de capital em que alertava para um risco de reputação, resultante de problemas financeiros da ESI e de irregularidades nas contas daquela empresa, na medida em que esta sociedade era detida pelo maior acionista do BES, existindo vários administradores comuns.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A CSSF comunicou ainda por carta a intenção de reportar as informações recebidas sobre a situação financeira da Espírito Santo Internacional à Procuradoria de Justiça do Luxemburgo “que indiciam que existem erros e eventual falsificação das contas da ESI”. No entanto, no dia seguinte, 16 de maio, a mesma responsável esclareceu que o processo ainda não tinha sido formalizado junto das autoridades do país.

Também a KPMG, uma das auditorias que trabalhou com o Banco de Portugal para apurar a situação da Espírito Santo Internacional adiantou que as conclusões do relatório de revisão limitada então produzido “não teriam impacto nas contas do BES e da ESFG além das descritas nas ênfases apresentadas nas certificações de contas do BES e do ESFG”, referentes a 2013.

Em resultado destas diligências, o prospeto do aumento de capital do BES incluiu dois fatores de risco que não estavam na versão inicial (há um projeto enviado a 24 de Abril): riscos reputacionais associados à potencial deterioração ou perceção de deterioração da posição financeira da Espírito Santo Internacional ou das suas subsidiárias; a situação financeira da ESI pode afetar a reputação do BES e a cotação das suas ações. O documento assumia também, pela primeira vez em público, a existência de “irregularidades materialmente relevantes nas contas da ESI”, sublinhando contudo as medidas implementadas para salvaguardar o impacto no BES.

O pior negócio do mundo

Apesar destas revelações, comunicadas no dia 20 de Maio, o reforço de capital de 1045 milhões de euros, foi todo colocado, tendo o então presidente executivo, Ricardo Salgado, classificado a operação como “o aumento de capital de maior sucesso desde a privatização do BES” em 1992.

A operação foi recentemente classificada pelo Financial Times como um dos piores negócios de sempre no mundo financeiro. Menos de dois meses depois de comprarem a novos títulos do BES, os acionistas perderam todo o investimento no quadro da resolução do banco.

O reforço de capital está a ser investigado pela CMVM no sentido de apurar se as entidades responsáveis pela informação prestada no prospeto tinham informação relevante sobre o grupo e o banco que omitiram aos investidores. Entre as entidades que podem ser responsabilizadas, estão a entidade emitente, o intermediário financeiro (que era o BESI), os administradores e responsáveis por funções de auditoria do BES, bem como o auditor externo e o revisor oficial e contas. O documento identifica cerca de 30 responsáveis individuais, por força das funções que exerciam.

O presidente da CMVM, Carlos Tavares, já admitiu no Parlamento que a entidade foi pressionada dos assessores financeiros para acelerar a aprovação do aumento de capital. Para além do Banco Espírito Santo Internacional (BESI), o aumento de capital foi tomado firme por um sindicato com 15 bancos internacionais. Os intervenientes mais relevantes foram a UBS, o Citigroup, JP Morgan, Nomura e Morgan Stanley, que recentemente anunciou a compra de ações do BES fora de negociação. Carlos Tavares será ouvido terça-feira na comissão parlamentar de inquérito à gestão do BES e GES.

Desde pelo menos março deste ano que existem contactos entre os responsáveis da ESFG e as autoridades de supervisão luxemburguesas sobre a situação da ESI, sobretudo porque a holding financeira do GES, cotada na bolsa do Luxemburgo, foi obrigada a constituir uma provisão de 700 milhões de euros nas contas de 2013, para responder ao provável incumprimento da ESI no reembolso de papel comercial vendido a clientes do BES. Esta provisão levou ao atraso na aprovação das contas da ESFG e da assembleia geral.

A CMVM também manteve contactos com a ESFG, que era igualmente cotada em Lisboa. Numa reunião a 24 de março, os assessores financeiros e jurídicos da holding explicaram que a ESI tinha emitido 1700 milhões de euros de papel comercial (títulos de dívida), que tinham sido distribuídos pelo BES e Banque Privée (Suíça) aos seus clientes. À data estimava-se que o valor em dívida eram 700 milhões de euros e já tinha sido identificado o risco de default (incumprimento) da ESI, por auditorias realizada para o Banco de Portugal, no quadro da avaliação da solidez económica dos maiores clientes do crédito dos bancos. Foi este diagnóstico que levou o Banco de Portugal a exigir quatro condições ao maior acionista do BES:

1. A ESFG teria de assumir a responsabilidade caso a ESI entrasse em incumprimento no reembolso do papel comercial vendido aos clientes do BES, o que levou à provisão de 700 milhões de euros.

2. A ESFG assinaria um mandato irrevogável de venda da Tranquilidade que seria acionado em caso de default da ESI

3. O grupo teria de alienar uma parcela relevante dos ativos não financeiros

4. Foi proibida a venda/transferência de títulos de dívida de entidades não financeiras do Grupo Espírito Santo por parte do BES

Hoje sabe-se que a última imposição, que pretendia limitar a exposição do banco ao grupo não foi cumprida e a transgressão a esta instrução do Banco de Portugal, e seus efeitos no banco, é uma das matérias centrais da auditoria forense à anterior gestão do banco.