A proposta estava num documento com mais de 300 medidas apresentadas pelo PSOE — Partido Socialista Operário Espanhol — ao Podemos, esta terça-feira, numa tentativa de piscar o olho ao partido de Pablo Iglesias para o convencer a apoiar um Executivo socialista no país. No entanto, a medida destacou-se entre 370 propostas pelo seu teor inesperado: os socialistas propõem que as alunas que se inscrevam em cursos do ensino superior maioritariamente frequentados por homens (com mais de 70% de alunos matriculados do sexo masculino) fiquem isentas do pagamento da matrícula do primeiro ano. Discriminação positiva pertinente ou injusta? O debate está aberto em Espanha.

O objetivo da proposta, apontou o PSOE no programa “Proposta Aberta para um Programa Comum Progressista”, é “eliminar o fosso de género” existente em alguns cursos superiores, em especial nas áreas das Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemáticas (STEM, no acrónimo espanhol). Os socialistas pretendem, segundo apontam neste programa “progressista”, impedir a segregação educativa por questões de sexo nas universidades financiadas com fundos públicos — e para isso abrem a porta a outras “modificações normativas que sejam necessárias” para corrigir a desigualdade de género na frequência dos cursos, além da isenção do pagamento da matrícula do primeiro ano a alunas de alguns cursos.

Se a proposta programática tiver seguimento, as alunas espanholas poderiam deixar de pagar a matrícula de primeiro ano de ensino superior em licenciaturas na área da Informática — que no ano letivo 2016/2017 teve quase 89% dos seus alunos do sexo masculino, segundo dados do próprio ministério da Educação espanhol — e Engenharia, Indústria e Construção, em que aproximadamente 74% dos alunos matriculados no ano letivo 2016/2017 eram rapazes.

O líder do PSOE, Pedro Sánchez (à esquerda, de fato), a apertar a mão a Pablo Iglesias, líder do Podemos (@ Getty Images)

A proposta tem alguns defensores, mas está longe de ser consensual. A reitora da Universidade Jaume I (também com o pelouro das políticas de igualdade do Agrupamento de Reitores de Universidades Espanholas), Eva Alcón, é uma das defensores da proposta: ao jornal ABC, num artigo publicado esta sexta-feira, afirmou que considera que a medida “contribuiria para continuar a avançar na luta contra a desigualdade de género” mas poderá ser “insuficiente”, devendo ser “complementada com outras, como uma orientação para mulheres que trabalham” nestes ramos profissionais em que predominam os homens.

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À direita do PSOE no campo político espanhol, a proposta foi duramente criticada. Marta Marín, porta-voz do Ciudadanos (partido de centro-direita espanhol) para a área da Educação, acusou os socialistas de seguirem uma política de orientação “como fazia a União Soviética”. E acrescentou: “Para promover a presença de mulheres nas carreiras STEM, o que não se pode fazer é tratar-nos como se fossemos idiotas. É uma medida patriarcal e machista. Não podem dizer-nos o que fazer e o que estudar, isto não acontecia nem no Estalinismo. O PSOE pensa que as pessoas escolhem a carreira que vão seguir por motivos económicos [custo das matrículas] e não é assim. Além de que não me parece equitativo, não é justo que o filho de um varredor de rua de Alicante pague a matrícula da filha de um milionário das Rozas [de Madrid]”.

O Ciudadanos, partido de centro-direita liderado por Albert Rivera (na fotografia), manifestou-se contra a proposta dos socialistas espanhóis — e com palavras duras (@ David Ramos/Getty Images)

Já a interveniente política com a mesma pasta do Partido Popular (PP), Sandra Moneo, acusou PSOE de tentar “dirigir a vida das mulheres” e discriminar rapazes que estudam em cursos frequentados por uma larga maioria de alunas do sexo feminino:

O PSOE e a esquerda em geral empenham-se em dirigir a vida das mulheres e o que queremos é ser livres e ter as mesmas oportunidades que têm os homens. A questão é se também estamos, na mesma medida, dispostos a oferecer matrículas aos homens que vão para carreiras nas quais têm uma representação de menos de 30%”, referiu Sandra Moneo.

As críticas à proposta, porém, não se concentram apenas nos partidos políticos que se opõem ao PSOE e às formações partidárias à sua esquerda. Citado pelo jornal ABC, o presidente para a área da Educação da Central Sindical Independente e de Funcionários de Espanha (que representa sobretudo, mas não só, trabalhadores da administração pública), Mario Gutiérrez, afirmou: “A proposta não está explicada. Uma discriminação positiva tem de ser muito fundamentada e neste caso isso não acontece. Não existe diferenciação de sexo nas matrículas do ensino superior”.

O jornal El Español difundiu também esta sexta-feira os lamentos de alunos e trabalhadores espanhóis do sexo masculino em áreas nas quais predominam mulheres. Um deles, Jonay, que estuda Enfermagem, apontou: “Se as raparigas não pagarem matrículas nos cursos de Engenharia, eu também não deveria pagar em Enfermagem por ser rapaz”. No ano letivo 2016/2017, os cursos superiores das áreas de Saúde e Serviços Sociais em Espanha foram frequentados por mais de 70% de alunos do sexo feminino.

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O teor desta proposta do PSOE é especialmente surpreendente dado posições anteriores do partido, que em janeiro de 2018 defendia que todos os alunos do ensino superior em Espanha — e não apenas as mulheres que frequentam cursos de áreas nas quais os homens predominam — deveriam estar isentos do pagamento da matrícula do primeiro ano. “Não queremos que ninguém perca a oportunidade de estudar na universidade porque não pode custear a primeira matrícula”, anunciou então o líder socialista Pedro Sánchez, que garantiu que o PSOE iria propor “a gratuitidade da primeira matrícula para os estudantes do ensino superior de universidades públicas”.

Talvez acossado pelas críticas, o partido de centro-esquerda já veio desvalorizar a sua própria proposta, através da secretária executiva para as políticas de Educação e Universidades do PSOE. Mari Luz Seijó, também citada pelo ABC, disse que esta “não é uma medida fechada” e lembrou precisamente a proposta antiga do partido acerca da isenção de pagamento da matrícula do primeiro ano de ensino superior (em universidades públicas) dever ser extensível a todos os alunos.

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Em Espanha, no ano letivo 2018/2019, os estudantes de sexo feminino em cursos nas áreas de Engenharia e Arquitetura representavam apenas 24,9% do total dos alunos matriculados em universidades públicas — em instituições privadas, a percentagem de estudantes do sexo feminino nestas cursos é bastante superior, de 58,4%, isto também segundo dados do Ministério da Educação espanhol, citados pelo ABC.

Em Portugal também há uma disparidade significativa de género em alguns cursos do ensino superior. Em 2018, só 28% dos alunos em cursos superiores nas áreas de Engenharia, Indústrias Transformadoras e Construção eram mulheres, de acordo com a Pordata. Num polo oposto, e no mesmo ano, 77% dos alunos em cursos superiores nas áreas de Saúde e Proteção Social já eram do sexo feminino.