O Ministério do Trabalho e da Segurança Social e a Câmara de Lisboa foram rápidos a contestar as conclusões da auditoria do Tribunal de Contas que apontavam críticas ao acordo feito entre as duas entidades para a venda de 11 imóveis. Primeiro, houve um comunicado do MTSS a assegurar que a operação em causa não só tinha cumprido todas as regras, e na verdade a auditoria nunca diz que estas foram quebradas, como foi alvo de visto prévio pelos serviços do próprio tribunal. E esta luz verde foi dada durante o período em que estava a recolher o contraditório das entidades visadas e antes de produzir o relatório final conhecido esta quinta-feira.

Um documento remetido ao Observador pela autarquia de Lisboa revela que o visto prévio à operação de venda, que foi concretizada no ano passado, foi dado pelo Tribunal de Contas no final de outubro sem fazer comentários. A luz verde veio já dias depois da autarquia ter remetido o seu contraditório à auditoria que avaliou este negócio no quadro da gestão do património imobiliário da Segurança Social. Por outro lado, o texto completo da auditoria, finalizado em dezembro de 2019, revela que a posição dos juízes sobre a avaliação e qualificação produzidas sobre este negócio não foi consensual.

Auditoria. Segurança Social fez acordo para vender imóveis à Câmara de Lisboa abaixo do valor de mercado

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Um dos oito juízes conselheiros que avaliaram este relatório votou contra. Maria dos Anjos Capote, que foi diretora-geral do Tesouro e secretária de Estado do Tesouro por alguns meses, saiu do Governo Sócrates com a demissão do ministro Campos e Cunha, fez uma declaração a justificar o voto de vencida. Nessa declaração salienta que o Tribunal deveria ter tido em conta “os problemas sérios” que condicionam a gestão do património do Estado, até porque os conhece bem.

Em relação à política de gestão imobiliária, que segundo a auditoria poderia ter resultado em operações mais lucrativas, a juíza alerta para os riscos elevados deste negócio e considera que as entidades públicas “não podem recorrer a práticas comuns neste ramo de negócio extremamente agressivo do ponto de vista concorrência”. Argumentos que parecem sustentar alguns dos reparos feitos pelo autarca de Lisboa quando falou em “especulação imobiliária”.

Em conferência de imprensa, Fernando Medina invocou os mesmos argumentos já usados pelo Ministério da Segurança Social para refutar as falhas apontadas na auditoria, mas indo mais longe no tom das acusações ao afirmar que o Tribunal de Contas produzia relatórios de “baixíssima qualidade técnica”.

O autarca de Lisboa já no passado recente se envolveu em polémicas com os juízes do TdC, sobretudo depois de estes terem recusado dar visto prévio a uma parceria com privados no quadro do programa de promoção de rendas acessíveis. Desta vez chegou mesmo a acusar o Tribunal de “perseguição política” e de querer que a Segurança Social fomente a “especulação imobiliária”, em detrimento do interesse público que associa ao programa de rendas acessíveis para o qual estes 11 imóveis estão destinados. O contrato de venda consultado pelo Observador estabelece que estes imóveis cedidos pela Segurança Social, em zonas muito valorizadas da capital, têm como destino o programa de rendas acessíveis.

Fernando Medina acusa Tribunal de Contas de perseguição política — e de “fazer relatórios de baixíssima qualidade técnica”

Maria dos Anjos Capote defende também que não existem fundamentos suficientes para o segundo parágrafo da síntese que acompanha o relatório, em que se conclui que a Segurança Social “não maximizou as receitas” e no qual se apontam falhas ao controlo e dos contratos e à eficácia na cobrança de rendas. A mesma dúvida sustenta a sua oposição à conclusão de que a Segurança Social privilegiou o ajuste direto e que isso resultou numa margem menor obtida na venda, bem como as críticas feitas sobre avaliações.

E quando chega à conclusão que critica o acordo para a venda de 11 imóveis à Câmara de Lisboa, nomeadamente por ter sido fixado um preço de venda inferior ao das avaliações pedidas pela Segurança Social, a juíza considera que o parágrafo não é adequado, quer em termos terminológicos, quer de conteúdo”.

De facto, não subscrevo os termos do juízo feito a propósito deste processo” (…) Penso que o contraditório efetuado pela CML (Câmara Municipal de Lisboa) foi esclarecedor sobre algumas questões suscitadas”.

Um dos argumentos usados pela autarquia contesta a qualificação de “subsídio”, feita pelo Tribunal ainda que entre aspas, da isenção do pagamento de renda durante dois anos à Segurança Social pela Câmara de Lisboa. O município presidido por Fernando Medina lembra que é uma prática corrente no mercado de arrendamento quando estão em causa a realização de obras financiadas pelo ocupante.

E destaca que ao exercer a opção de compra no início do prazo previsto — o acordo foi feito em julho de 2018 e a aquisição avançou no segundo semestre de 2019 — o “Município nem chega a usufruir desse período de carência, pagando logo a totalidade do preço devido, o que significa que o IGFSS (Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) vai dispor imediatamente da totalidade da verba de 57,2 milhões de euros, podendo, designadamente, utilizá-lo em aplicações alternativas.”.

Mas afinal como se explica que o Tribunal de Contas, que optou por não comentar estas acusações, pareça ter dois pesos e duas medidas para o mesmo contrato/operação?

Esta dupla apreciação não é inédita e já aconteceu em outros casos polémicos — como a renegociação do contrato da Lusoponte, visada pelo Tribunal, mas arrasada em auditoria anos depois — ou mais recentemente, os contratos de subconcessões rodoviárias que os juízes deixaram passar depois de alterados, e que uma auditoria veio depois a dizer que estes contratos continham cláusulas secretas que não foram visadas pelo Tribunal e cuja execução seria ilegal.

O Tribunal de Contas funciona como o órgão de auditoria externa dos gastos públicos, mas as suas funções dividem-se em fiscalização prévia e fiscalização sucessiva, ou seja, a posteriori. No primeiro caso, e nos casos previstos na lei, as entidades públicas que pretendem fazer uma despesa suportada num contrato com um terceiro, pode ser privado, ou público, têm de pedir a autorização prévia ao Tribunal. O contrato só é válido, e produz efeito, depois do visto prévio, mas este tem de ser um processo relativamente célere e decidido com a base em critérios de cumprimento das regras legais.

A mesma operação pode, e muitas vezes é, novamente escrutinada em sede de fiscalização sucessiva, mas agora com outra profundidade e tempo de análise e numa perspetiva do ponto de vista dos resultados financeiros para o Estado. E neste caso, a luz verde foi dada a um contrato da Câmara de Lisboa, enquanto a auditoria analisa a operação do ponto de vista do vendedor, a Segurança Social. O que já não é tão comum é que os dois processos se tenham desenvolvido no mesmo horizonte temporal, ainda que os juízes que fazem estes dois tipos de fiscalização pertençam a divisões distintas que têm critérios e objetivos diferentes.