O “maior deserto de sempre”, uma fase “terrivelmente difícil” e “meses devastadores” — é desta forma que muitos cozinheiros portugueses estão a caracterizar a atual situação da restauração portuguesa que, à semelhança de muitas outras áreas de negócio, estão a atravessar uma fase crítica por culpa do novo coronavirus. De forma geral apelam ainda à união entre a classe, à compreensão dos clientes e à atenção do governo.
Passaram pouco mais de 24 horas desde que a Organização Mundial de Saúde declarou o estado de pandemia por culpa da Covid-19, mas antes disso o impacto já se sentia nas contas de empresários da restauração e cozinheiros de todo o mundo — Portugal incluído. Só ao longo desta quinta-feira, porém, é que vários chefs portugueses se pronunciaram em público, via redes sociais, principalmente, sobre a situação real que estão a enfrentar. E isto ainda antes de o Governo ter determinado que os restaurantes teriam de limitar a sua capacidade a um terço, para garantir que os clientes ficam com distanciamento suficiente para prevenir a propagação do vírus.
https://www.facebook.com/rui.paula/posts/2661391367292073
“Trabalho em hotelaria há 26 anos. Tudo que conquistei até hoje foi a pulso. […] Nunca pensei que esta pandemia viesse afetar os nossos negócios de uma maneira tão rápida e incisiva.” Estas palavras foram escritas pelo chef Rui Paula, o mais recente duas estrelas português (Casa de Chá da Boa Nova, D.O.P e D.O.C. são alguns dos seus restaurantes mais conhecidos, todos eles no norte do país) e jurado da versão nacional do Masterchef. Ele foi um dos primeiros a soltar o alarme através de um longo post nas suas redes sociais que rapidamente começou a ser partilhado por muitos outros cozinheiros nacionais.
À semelhança da maioria dos seus colegas de profissão que ainda não escolheram fechar os seus espaços, Rui Paula reforça que em todos os seus restaurantes foram reforçadas “as regras de HACCP [“Hazard Analysis and Critical Control Points”, que se traduz para “Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle e cuidados no contacto com os clientes”] mas que mesmo assim “os cancelamentos não param de chegar…” Isso já se traduz numa quebra de faturação “de 60%” — “Todos sabemos que desta faturação ainda tem que se descontar o IVA, nem vale a pena falar de todas as despesas inerentes ao negócio, como ordenados, segurança social, rendas, luz…” O mesmo cozinheiro nortenho refere ainda que nunca falhou com pagamentos a fornecedores, “até ao dia de hoje”.
Escrevo este texto nesta altura, porque estou à espera que o nosso governo tome medidas claras e objetivas no que respeita à restauração, para ajudar a ultrapassar esta crise.
Se não forem tomadas medidas drásticas e de rápida implementação, metade dos estabelecimentos hoteleiros/restauração de Portugal fechará as suas portas. As empresas necessitam de estar minimamente saudáveis aquando da implementação dessas medidas e não já na fase de prejuízo, se não a recuperação após COVID-19 será de extrema dificuldade. […] Nesta hora que vos escrevo, apelo a um conjunto de chefs, restauradores e hoteleiros que ergam as vozes e nos unemos na pressão às entidades competentes. Não é tempo de inércia, mas sim de ação! É urgente uma política concertada!”
Em Lisboa, pelas palavras do chef Alexandre Silva (do estrelado Loco, do novo Fogo e de um outro espaço no Mercado da Ribeira), o estado de espírito é idêntico. “Se me dissessem que um vírus se iria tornar em pandemia e que a economia iria colapsar, com quase toda a certeza me iria rir, a verdade é que isso está a acontecer em frente ás nossas portas e dentro das nossas casas”. É isto que se lê numa publicação partilhada há algumas horas no facebook e no instagram que surge acompanhada por uma fotografia de um deserto. “Enfrentamos hoje o que será uma das maiores crises se não a maior, na industria de restauração (e não só)”, lê-se também.
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1278172609044157&set=a.115136122014484&type=3&theater
O cozinheiro fala dos cancelamentos de reservas que chegam “a todas as horas”, das várias contas que vão continuar a ter de ser pagas e tudo isso mesmo tendo em conta que reforçaram o sistema de HACCP e a “monitorização do estado de saúde” de todos os colaborados. O apelo à união e à intervenção do poder político também é igual ao de Rui Paula: “Peço às entidades competentes que coloquem em prática soluções para ajudar as empresas a ultrapassar tudo isto, porque sem trabalho as pessoas não vão poder ter qualidade de vida e dificilmente conseguiremos que o mundo volte a andar em tempo útil. […] Apelo a todos os Cozinheiros e Empresários que unam as vozes e que lutem pelo bem estar da economia.”
Também em Lisboa o chef Ljubomir Stanisic já se pronunciou sobre este tema. O responsável por espaços como o 100 Maneiras e o 100 Maneiras Bistro está em linha com os seus colegas Alexandre Silva e Rui Paula ao reforçar que ampliaram as suas medidas de precaução em assuntos relacionados não só com “os protocolos de higienização”, por exemplo, mas também “recorrendo aos stocks existentes para diminuir a frequência de encomendas e assim reduzir a entrada de novos produtos”, aumentando “a disponibilidade de produtos de desinfeção” e “vigiando atentamente o estado de saúde de todos” os colaboradores. O que é preciso fazer? “Finalmente, e fazendo eco de muitos colegas que já expressaram as mesmas dificuldades, numa fase terrivelmente difícil para todos, pedimos a todos os membros da indústria que se unam para que, em conjunto com os responsáveis pelo nosso país, se possam desenvolver soluções que ajudem as empresas a sobreviver a esta pandemia.”
https://www.facebook.com/ljubomir.stanisic.5/posts/3064270496930040?__tn__=K-R
Numa outra publicação, esta na sua conta oficial de instagram, o mesmo Ljubomir lança um apelo ainda mais urgente e direcionado a António Costa e Fernando Medina: “Precisamos de um grande remédio, urgente!” Quase uma hora antes do primeiro-ministro falar ao país e anunciar que será imposta (entre várias coisas) uma redução da capacidade dos restaurantes a 1/3, “Ljubo”, como também é conhecido, falava num “grito de ajuda” dado em seu nome e em nome de “todos os chefs que estão a sofrer como nunca antes sofreram”. “Estamos impotentes. Não há mais nada que possamos fazer sozinhos. precisamos da vossa ajuda, precisamos de uma atitude firme e peremptória, rápida, urgente!”, escreveu o cozinheiro.
https://www.instagram.com/p/B9pc9pqpG84/
A sul, no Algarve, uma das regiões mais turísticas do país, tanto a realidade como os prognósticos são igualmente assustadores. Rui Silvestre, o chef do também recém-estrelado Vistas, em Vila Nova de Cacela, recorreu ao facebook para dizer que “não é hora para brincadeiras” porque na área da “restauração e hotelaria, o medo e a incerteza estão a tomar conta de todos os negócios”. À semelhança dos seus colegas de profissão ressalva que os cancelamentos têm sido uma constante e que se não houver união e “uma só voz” a pedir ajuda, o futuro não será sorridente — “ninguém está preparado para uma nova crise económica.”
https://www.facebook.com/ruisilvestrechef/photos/a.105784984124375/212909616745244/?type=3&theater
No mesmo dia em que a Associação da Hotelaria de Portugal previu perdas de receitas turísticas entre os 500 e 800 milhões de euros durante os próximos quatro meses (área intimamente ligada à da restauração), muitos restaurantes anunciaram também que iam fechar as portas. No Algarve, por exemplo, há o caso do Alameda, em Faro. Em Lisboa o Grupo Amorim Luxury anunciou o encerramento de todos os espaços “JNCQUOI” e muitos outros negócios da mesma área certamente seguirão o mesmo caminho.
Lá fora, noutros países que também estão a enfrentar este surto viral que tem virado o mundo do avesso, o desespero dos profissionais desta área e idêntico. Em Espanha já há quem peça aos clientes para não cancelarem as suas reservas, em vez disso optem pelo adiamento porque assim estarão a ajudar estes negócios.
https://www.instagram.com/p/B9owqYLomtA/
De Itália também vem a notícia de que o restaurante Aqua Crua, do chef Giuliano Baldessari (uma estrela Michelin), está a tentar combater a tremenda crise que se faz sentir neste setor com menus fixos de 30€, para serem entregues ao domicílio. Uma forma não só de ajudar os produtores que trabalham com ele como também o seu próprio negócio. Na página de facebook do seu restaurante, Baldessari escreveu que “nesta situação de caos e ansiedade” pensou que “não poderia fazer nada melhor” que o seu trabalho. Daí esta ideia de preparar e entregar em casa “daqueles que não podem ou não querem” sair do isolamento estes menus fixos vendidos “obviamente, a um preço com desconto.”
https://www.facebook.com/aquacrua/photos/a.436400096490090/1855262987937120/?type=3&theater
O futuro ainda é uma grande incógnita mas o presente destes cozinheiros não parece mostrar a tal luz ao fundo do túnel. As decisões que sejam (ou não) tomadas nos próximos dias podem ser determinantes para a preservação de um setor que no passado recente tanto fez para consolidar Portugal como um destino turístico de valor. A condição geral que se tem vivido é sem precedentes em todos os aspetos e os seus desafios são mais que muitos. A indústria da hotelaria e restauração pode não estar no topo das prioridades da governação mas os exemplos referidos nestas linhas mostram que está a pôr o pé na porta e a fazer-se ouvir.