O possível desaparecimento de espaços noturnos com programação regular representaria uma “enorme perda cultural” e teria “um impacto económico devastador”, com destruição de postos de trabalho e de um ecossistema que inclui músicos, técnicos e programadores culturais, defende o diretor do MusicBox, sala de concertos e atuações de DJs situada no Cais do Sodré, em Lisboa.

Gonçalo Riscado garante que estes espaços “estão claramente em risco” porque na sua maioria não voltaram a abrir portas desde o encerramento da economia em meados de março devido à pandemia da covid-19. E, no entanto, continuam a ter de pagar custos fixos, como sejam rendas, parte dos salários dos funcionários em regime de lay off, créditos bancários e leasing de equipamentos. O MusicBox tem as equipas em lay off, recorreu ao crédito bancário e também a poupanças que entretanto se esgotaram.

Perante este cenário, Gonçalo Riscado tem estado envolvido desde maio na criação de uma entidade que dialogue com os poderes públicos e os leve a reconhecer a vertente cultural de clubes noturnos que em inglês são conhecidos como grassroots music venues.

Esta entidade representativa está prestes a nascer e já tem os estatutos definidos. Vai chamar-se Associação Portuguesa de Salas de Programação de Música e é constituída, para já, por 25 espaços do continente e das ilhas que em conjunto acolhem mais de um milhão de pessoas por ano, de acordo com números divulgados pelos próprios. “Estamos a tratar do registo e até ao fim de agosto queremos ter tudo pronto”, adianta o mesmo responsável.

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Além de “um processo de sensibilização pública, que aliás já tem vindo a acontecer”, a associação pretende sobretudo “explicar aos poderes públicos porque é que este circuito noturno tem de ser protegido”, adianta Gonçalo Riscado. “Neste momento, necessitamos de apoios a fundo perdido para podermos aguentar os meses que aí vêm até podermos regressar à atividade”, defende, apontando a necessidade de diálogo com o Governo e as autarquias. “No caso da Câmara de Lisboa, acho que as medidas para o setor cultural foram muito boas no início e incluíram as salas noturnas, mas tinham a duração de três ou quatro meses e a verdade é que vamos estar encerrados muito para além disso. Esperamos por novas medidas e vamos lutar por isso.”

Contactado pelo Observador, o Ministério da Cultura disse que é cedo para fazer comentários. O mesmo foi transmitido pela Câmara de Lisboa e pela Câmara do Porto.

[Maus Hábitos, no Porto, é um dos fundadores da nova associação:]

Pistas de dança “inutilizáveis”

A Associação Portuguesa de Salas de Programação de Música tem como mentores o MusicBox e o Lux-Frágil, de Lisboa, além do Maus Hábitos, do Porto. De entre as casas que entretanto se juntaram destacam-se Alma Danada (Almada), Arco 8 (Ponta Delgada), B.Leza (Lisboa), Bang Venue (Torres Vedras), Barracuda (Porto), Casa Independente (Lisboa), Club de Vila Real (Vila Real), Damas (Lisboa), Dias Úteis (Beja), Passos Manuel (Porto), Salão Brazil (Coimbra) e Hot Club (Lisboa).

Sem autorização para reabrir em condições normais, e sem previsão de quando isso possa acontecer, os espaços noturnos estão em rutura e antecipam a seguir ao verão um agudizar da crise provocada pelas decisões do Governo para fazer face à pandemia. Fecharam em meados de março, quando o Estado de Emergência foi decretado pelo Presidente da República, com o apoio do Governo e de uma maioria na Assembleia da República. Podem funcionar desde 1 de agosto como se fossem cafés ou pastelarias, desde que as respetivas pistas de dança “permaneçam inutilizáveis”, de acordo com a decisão de 30 de julho do executivo de António Costa.

Esta semana o jornal Expresso escreveu que “há uma onda de revolta a crescer junto dos empresários da noite” e citou presidente da Associação de Discotecas Nacional, José Gouveia, segundo o qual, “mais do que reabrir, as empresas pensam mais nas linhas financeiras com que podem contar para poder sobreviver e pagar os encargos, e neste sector os apoios têm sido zero à exceção do lay off generalizado”. A mesma notícia dava conta de que “o principal motivo de revolta no setor” da economia da noite é a autorização do Governo para que a Festa do Avante se realize, de 4 a 6 de setembro, enquanto as casas noturnas continuam sem possibilidade de reabrir portas nas condições habituais.

No dizer de Gonçalo Riscado, um estabelecimento de bebidas com dança (como são designadas na lei as discotecas e os clubes noturnos) pode ter uma lotação máxima de três pessoas por metro quadrado, pelo que os custos de operação estão pensados em função dessa escala e a sobrevivência está comprometida à luz das regras atuais.

“O custo de organizar um espaço com programação é muito alto. Temos equipas de programação, de curadoria e de comunicação. Neste momento, tudo isto está impedido e não há perspetiva de deixar de estar, portanto, não se consegue ir à luta para tentar sobreviver”, lamenta o diretor do MusicBox — espaço criado em 2006 e integrado na empresa Cultural Trend Lisbon (CTL), que também gere o bar-restaurante Povo, igualmente no Cais do Sodré.

A CTL tem no portfólio projetos culturais como o Festival Silêncio, dedicado à “celebração da palavra”, ou o MiL – Lisbon International Music Network, cuja 4ª edição estava prevista para março último e teve de ser cancelada. Esta semana, a CTL inaugurou o projeto temporário Casa do Capitão, situado ao ar livre na zona do Beato, onde até fins de outubro há exposições, música ao vivo e espaço de restauração.

Discotecas de entretenimento puro são diferentes de salas noturnas com programação, defende Gonçalo Riscado (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

“Programar música e artistas e à nossa razão de existir”

Referindo-se aos grassroots music venues, Gonçalo Riscado diz que têm características diferenciam das de outras discotecas e constituem “o primeiro circuito” para artistas da música, por serem “um primeiro palco e uma plataforma de divulgação”. “Antes de um artista poder ir a palcos maiores, a salas mais institucionais ou a um grande festival, iniciou a carreira neste circuito”, sublinha. No MusicBox registam-se por ano mais de 200 concertos e mais de 600 atuações de DJs (live acts).

“Temos respeito por todos e não desvalorizamos a importância da dança e do entretenimento puro, até porque também nos incluímos aí”, sublinha o responsável. “Mas numa discoteca comum a música funciona como um veículo para o consumo e para a diversão, não tanto como uma oportunidade de programação cultural. No nosso caso, programar música e artistas e à nossa razão de existir. Vendemos bilhetes, bebidas e comida, claro, como forma de ajudar a financiar a atividade, mas fazemos programação cultural e as nossas equipas estão desenhadas para isso.”

Os três fundadores da associação tiveram reuniões há cerca de um mês e meio com a Secretaria de Estado do Comércio e o Ministério da Cultura, ainda na qualidade de representantes dos espaços que dirigem e não enquanto membros da associação, que só daqui a alguns dias estará legalizada. Dessas reuniões não houve resultados concretos. “O secretário de Estado do Comércio mostrou uma enorme compreensão dos problemas e um conhecimento sustentado deste circuito”, resume Gonçalo Riscado. “No Ministério da Cultura explicámos o nosso ponto de vista, mas para já ainda não sentimos muita abertura para considerar estes espaços como um investimento estratégico do Estado”, acrescenta. No início de setembro serão pedidas novas reuniões.

A associação pretende integrar a federação europeia Live DMA, onde hoje se agrupam 20 associações de salas de programação de música. Gonçalo Riscado refere que a pandemia e o encerramento forçado vieram precipitar uma necessidade de associativismo que era evidente há vários anos entre clubes noturnos portugueses.