George Mendes não deixa que Portugal seja só dos outros, é também seu, foge-lhe a boca para a verdade sempre que fala no país de coração, “no nosso país”, diz. O chef lusodescendente culpa a mãe e as tias pela paixão que ganhou pela cozinha e, sobretudo, pelos sabores portugueses que nunca deixaram de lhe chegar à mesa, mesmo tendo nascido já nos Estados Unidos. Visitou Portugal na sua infância, alimentou esse gostinho, mas foi mais tarde quando percebeu que a cozinha seria o seu porto de abrigo que lá voltou para ver o receituário tradicional com outros olhos, com a maturidade apurada de um chef que sabe o que quer: levar para o outro lado do Atlântico a comida portuguesa.

Fê-lo e ganhou uma estrela Michelin à conta disso, depois de ter aberto o seu primeiro restaurante, o Aldea, que fechou no início de 2020. Mas dez anos depois a aventura é outra e chama-se Veranda, o novo restaurante em Manhattan, Nova Iorque. Apesar de não se assumir como um restaurante português, como o seu primeiro projeto, o Veranda é uma continuidade do seu trabalho de cozinhar Portugal pelo mundo, agora juntando-lhe pratos de outros países, com outras influências, mas sempre “num processo de criação de espírito livre”, porque é essa liberdade na cozinha que lhe permite reinventar-se.

Filho de emigrantes beirões e nascido nos Estados Unidos da América, no Connecticut, George lembra-se das almoçaradas de família desde sempre, dessa tradição inquebrável de voltar às raízes pelo palato. Quando, em adolescente, visitou o Instituto de Culinária da América confirmou o que já achava: a cozinha era a sua praia. Praia essa de raízes portuguesas, por sinal, que fez questão de nunca largar ao longo da formação e dos primeiros passos enquanto chef .

Quando abriu o Aldea, em 2009, George não era, de todo, inexperiente — já tinha trabalhado com chefs como David Bouley, Roger Vergé, Sandro Gamba e até Martín Berasategui. Foi com este último que, na verdade, percebeu que era mantendo-se fiel às suas raízes que ia vingar. “Foi mesmo nesses anos de formação em que eu treinei com o Martin que ele me conseguiu abrir os olhos para voltar à cozinha das minhas raízes, à cozinha portuguesa”, revela. “Foi o Martín que me disse ‘podes pegar nas receitas das tuas avós, das tuas tias, e dar uma interpretação diferente’, porque nem sempre a cozinha tem de ter essas regras. É importante trabalhares com espírito livre. Não vais ter uma multa se trocares alguma coisa da receita. Tens esses sabores que são fortes e rústicos, estás a homenagear a cozinha portuguesa ao mesmo tempo que dás o teu jeito à coisa”.

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Foram uns primeiros anos difíceis, sobretudo porque o seu nome ainda não soava tão alto assim nos corredores da gastronomia. O nome George Mendes foi sendo construído à conta de muito trabalho e até de algum medo “em assumir que o Aldea era um português”, optando por construir uma imagem à volta da cultura gastronómica mediterrânica, até um crítico do The New York Times publicar uma crítica do restaurante “A Trip Afar, With Trusted Friends”. Foi aí que o Aldea passou a ser um restaurante português moderno, sem medos.

David Rabin chamou George Mendes para ser seu parceiro de negócio no Veranda ©DR

O Veranda surge de uma oportunidade conjunta com o restaurateur David Rabin — proprietário dos conhecidos Lamb’s Club, Cafe Clover, American Bar e Skylark —, que no mesmo hotel, o renovado Modernhaus SoHo, já detinha o bar e rooftop Jimmy, no 18.º andar do hotel. Quando finalmente David conseguiu negociar para ficar também com o espaço do restaurante chamou George para ser parceiro de negócio.

“No Veranda o conceito muda um bocadinho, é mais americano mas com pratos portugueses que podiam estar na carta do Lupulo ou do Aldea”, afirma. “Tenho oportunidade de continuar essa empreitada e, ao mesmo tempo, de jogar com outras cozinhas. É a oportunidade de me divertir outra vez e brincar com o que posso ao nível dos ingredientes, sem ter o peso da gestão todo sobre as minhas costas”.

Quanto ao peso da estrela Michelin que carregava no Aldea e que deixou para trás, confessa não estar muito preocupado. “A decisão das estrelas está sempre nas mãos dos inspetores e eu só quero cozinhar da melhor maneira possível sempre, ter uma equipa sólida que me acompanhe e ter os melhores produtos. Se isso [a estrela] me trouxer uma recompensa fico imensamente feliz, mas não posso estar sempre a pensar nisso”.

No novo restaurante, o chef admite ter inspirações vindas de todo o mundo — muito resultado daquilo que foi o último ano para ele, passado em casa, a cozinhar para si e para a mulher, porque “finalmente houve tempo para isso”. Fez experiências com sabores do México, do Japão e até se aventurou a fazer pasta caseira.

“Gosto de aprender sempre e durante este último ano não posso dizer que estive parado, tive de me entreter – não pude viajar, então lia e experimentava coisas. Senti-me revigorado, abri a mente para sabores diferentes, mas acho que o importante é manter-me fiel às minhas raízes e brincar o mais possível com os sabores na cozinha, é assim que deve ser”, admite, tendo desenhado a carta do Veranda para que esta fosse um bom casamento entre pratos reconhecivelmente americanos, com muitos pratos de inspiração mediterrânica e um grande ênfase numa cozinha com produtos frescos.

Num menu disperso que, apesar de tudo, fala português, há na carta do novo espaço chefiado por Mendes, um arroz de galinha feito no forno, com chouriço fumado e azeitona Kalamata, do qual o chef se orgulha de ter ido buscar às suas raízes. Mas há mais. Nas entradas há pastéis de bacalhau, acompanhados com maionese de paprika fumada, e a marcha segue nos pratos principais com um frango grelhado no carvão com piri-piri, uma receita da tia Natália, e também com um caril de camarão, uma inspiração que George diz ter ido beber à ex-colónia portuguesa Goa. Inevitável na ementa é o pastel de nata, o “fenómeno das sobremesas”, diz George, que começou por reproduzi-los quando abriu o Lupulo.

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“As pessoas passavam-se quando provavam. Vinham beber café e pediam as famosas egg tarts, adoravam aquilo”, conta. “Quando fechei o Lupulo toda a gente me veio pedir para ter os pastéis no Aldea e tive de os fazer. Consequentemente, quando fechei o Aldea e agora abri o Veranda era inevitável não os ter”. No novo espaço tem até caixinhas para que os clientes possam levar, ainda quentinhos, os pastéis de nata para casa.

“O pastel de nata é uma porta para Portugal. As pessoas aqui podem ter uma sobremesa que tem sete ou oito componentes ou um bolo de chocolate incrível, que vão sempre preferir o pastel de nata, é um fenómeno inexplicável”, explica.

O Veranda, conta-nos, é um “restaurante de temporadas”, que obedece à sazonalidade dos produtos, uma prática que desde sempre George se obrigou a seguir nas cozinhas por onde passou, até porque “um bom produto pode mudar o sabor de um prato”. Quando as estações frias baterem à porta, o chef diz que o menu muda e aí entrará a sua versão de um bacalhau à Gomes de Sá.

Numa espécie de mercearia alocada no restaurante, o chef fez questão que se perpetuasse o legado da culinária portuguesa e que os clientes levassem para casa alguns dos produtos de ouro de Portugal. A dourar as prateleiras há azeite português, manteigas de qualidade superior, sal marinho do Algarve e ainda pães de fermentação lenta, feitos por George, vendidos inteiros tal e qual como na padaria.

O pão de fermentação lenta amassado pelo chef pode ser levado para casa, assim como outros produtos portugueses ©Nikolas Koenig

O seu objetivo foi, e é desde sempre, dar a conhecer a comida portuguesa lá fora, mais precisamente em Nova Iorque, a cidade que lhe deu nome de chef e onde acaba por receber clientela de todo o mundo, não só norte-americanos. “Quando abri o Aldea, quis mostrar aos clientes norte-americanos o que era a cozinha portuguesa, de uma maneira mais refinada, claro. Um prato de arroz de pato no meu restaurante não era a mesma coisa que em Portugal, por exemplo”, conta. “Ser cozinheiro é ter a oportunidade de dares a conhecer a tua história, a tua origem, a outros que a comem de faca e garfo”.

O homem de negócios vs. O chef

Estar ao leme da cozinha ao mesmo tempo que se está à secretária rodeado de números e saldos contabilísticos que fazem andar um restaurante não é pêra doce, nem para a boca de George, que começou a perceber que nenhuma das duas tarefas conseguia ter 100% da sua atenção. “Eu tentei encontrar um sócio que me ajudasse com o Aldea, para me dedicar mais à cozinha, mas não foi possível, e essa foi uma das razões também para decidir fechá-lo. Tomar decisões enquanto homem de negócios é muito doloroso quando tens a paixão da cozinha do outro lado”, lamenta.

Encerrou de vez o Aldea ainda antes de a pandemia disparar e obrigar os negócios a fechar portas, e confessa que “foi o que lhe valeu”, uma vez que manter a estrutura do restaurante já estava complicado e a pandemia agravaria a situação.

Restavam-lhe dois anos de contrato do espaço que albergava o restaurante com estrela Michelin, e George teve de despir a jaleca para vestir o papel de homem de negócios e pensar não com o coração da cozinha, mas com a racionalidade de quem gere um restaurante. Dez anos depois, o chef luso-americano percebeu o quão difícil era ter — e sobretudo manter — um restaurante independente na cidade que nunca dorme.

“A economia começou a retrair-se ainda em 2019 e financeiramente começou a ser difícil. Precisámos de pensar o que fazer, se valeria a pena a continuarmos”, conta. “Naquela altura, precisava de olhar para as coisas com um olhar renovado, com uma visão mais criativa, mesmo do ponto de vista de chef. Queria rodear-me de pessoas que me ajudassem a gerir o Aldea, porque a ideia era focar-me mais na cozinha e não estava a ser possível”.

O Veranda fica no segundo piso do hotel e foi pensado para ter um ambiente acolhedor, quase uma selva urbana no centro nova iorquino ©Nikolas Koenig

Pelo meio nasceu e morreu o Lupulo —  outro projeto do chef “que nasceu à hora certa mas no sítio errado”. O espaço, muito focado na “comida portuguesa rústica” mas mais casual que o Aldea e inspirado nas cervejarias e tabernas portuguesas. Problema: estava num quarteirão de hotel que já tinha um outro restaurante italiano que acabava por absorver quase toda a clientela. Abriu em 2015, mas fechou no final de 2017.

Já sem ter um restaurante a cargo, durante os confinamentos, George via o cenário da restauração nova-iorquino a deteriorar-se, via “senhorios que mesmo com os negócios fechados queriam cobrar os mesmos valores de renda”, via “a falta de apoios do governo norte-americano”, via os seus amigos e chefs “a terem de fechar os seus restaurantes para nunca mais abrirem”, conta. “Foi assustador e sinto que foi semelhante em Lisboa o que se passou aqui. É muito difícil sobreviver e manter as portas abertas assim”.

Portugal: matar saudades e levar a comida mais longe

Não esquece Portugal nunca, nem a palavra saudade que de lá vem. A pandemia tirou-lhe as viagens — como a todos — e é disso que sente falta, de voltar ao país do coração que lhe dá tantas alegrias à mesa e outras tantas memórias familiares.

Quando volta, diz que descobre sempre algo novo que leva na bagagem para depois “brincar na cozinha e reproduzir qualquer coisa à sua maneira”. Comer e voltar aos sítios onde já foi feliz está sempre nos planos de George, que não falha uma visita aos amigos José Avillez, João Rodrigues, Henrique Sá Pessoa ou André Magalhães em Lisboa — tal como a cervejaria Ramiro —, Pedro Lemos, no Porto, ou até Noélia e Jerónimo no Algarve.

A cozinha portuguesa é simples, como diz, mas nem todos os ingredientes que George usa ou gostaria de usar nas suas recriações da cozinha lusa são fáceis de encontrar no outro lado do oceano. “Tudo o que é marisco é mais difícil, o que é normal pela sua frescura. Os pinhões, ainda com aquele sabor a resina, também são difíceis de encontrar tal como os ananases nos Açores, as marmeladas, as lapas do Algarve, os percebes…há muitas delícias portuguesas que é difícil obtermos cá. A única maneira, e a que dá mais prazer, é mesmo ir a Portugal”.

Entre visitas obrigatórias, há pratos que o chef também não perde, muitos deles porque não tem oportunidade de os comer em Nova Iorque — é o caso de uma boa bifana ou um bom prego no pão, mariscadas fartas ou até uma carne de porco à alentejana, isto porque “há pratos que ficam no coração para a vida inteira”. Isto sem falar dos pastéis de nata, que não perde por nada e lembra com saudade quando pela primeira vez provou um pastel de Belém.

Desde que abriu o Lupulo, George reproduz os pastéis de nata que fazem sucesso em todos os seus restaurantes. No Veranda até são vendidos em take-away ©DR

O chef lamenta, no entanto, que a comida portuguesa não consiga projetar-se no mundo como tantas outras que temos sempre na ponta da língua. Diz que é importante haver mais cozinheiros portugueses ou descendentes — como é o seu caso — que possam fazer um trabalho de disseminação da cultura gastronómica do país noutros pontos do globo. “Nos Estados Unidos, por exemplo, sinto que precisamos de mais cozinheiros portugueses, mais ajuda dos jornalistas para que quem lê possa perceber e sentir-me atraído a ir aos restaurantes por ter isto ou aquilo para comer”, refere. “Os estrangeiros que provam a comida portuguesa adoram-na. Temos uma cozinha simples, mas muito intensa nos sabores que usamos, pelo que é importante trabalhar com ingredientes de qualidade. Um refogado, com bom azeite e cebola, pode mudar tudo, é meio caminho andado para fazeres um bom prato”.

George, porém, olhando para Portugal reconhece que o que se tem vivido nos últimos anos é muito diferente do cenário de há duas décadas. O que é que mudou? “O turismo, sem dúvida. Quem é que queria saber de Lisboa há uns 20 anos? Ninguém, não era uma cidade que estivesse nos guias turísticos, não estava preparada talvez. Mas em pouco tempo, assistimos a esse boom de turismo e as pessoas ficaram entusiasmadas com Lisboa, com a nossa comida, que adoram. Acho que isso ajuda muito a mostrar o que Portugal é e pode ser, se continuarmos a caminhar nesse sentido”.

Não nega, no entanto, a introdução do Guia Michelin em Portugal e como isso mudou o cenário gastronómico no sentido do turismo ligado às estrelas. “Vi Lisboa crescer e tornar-se numa cidade moderna. A nível gastronómico muito ajudou quando o guia Michelin começou a estrelar restaurantes lá, isso conseguiu pôr-nos num patamar ao nível de Espanha, França ou Itália”.

Morada: Modernhaus SoHo. 23 Grand Street New York, NY 10013.
Horário: Segunda a domingo 17h30 às 21h30.
Telefone: 212-201-9117
Email: info@verandasoho.com
Site e reservas:  www.verandasoho.com