“Como descendente de Camilo, isto é aberrante”, confessou Ângela Castelo Branco. A tetraneta do escritor português reagiu à polémica que teve origem numa petição para remover a estátua Amores de Camilo, do Largo Amor de Perdição, por se tratar de um “ultraje” e um “exemplo mais ou menos pornográfico”.

“Isto não é o Camilo. Isto é meia dúzia de senhores que se devem achar donos do Porto ou de Portugal que assinaram uma petição que não faz sentido nenhum e que dá abertura à possibilidade de destruir o património”, afirmou no programa Contra-Corrente, relativamente aos 37 signatários e ao próprio presidente da câmara, Rui Moreira, que acedeu ao pedido e ordenou a remoção da estátua de Francisco Simões.

Porto e não só: agora as estátuas também se abatem

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Para a tetraneta do escritor, “esta cultura de cancelamento” está a um passo “de uma ditadura de costumes”, que “quer limpar cidades, museus, literatura, arte, tudo o que pode indicar uma identidade nacional”. “No Brasil, Camilo tem uma expoente na literatura. Em Portugal, infelizmente, já foi cancelado dos livros obrigatórios escolares. Não se percebe porquê”.

O gosto não é arte. Não se decide arte pelo gosto. Isto não tem a ver com o feminismo, nem com a arte, nem com o que seja. Tem, sim, com intenções que não são nossas. São importações americanas e inglesas de Oxford”, rematou.

Ângela Castelo Branco não é a única a pensar desta forma. Aliás, a própria vereadora da câmara do Porto pela CDU, Ilda Figueiredo, que assinou a petição que pediu o “favor higiénico de mandar desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça e despejá-la onde não possa agredir a memória de Camilo”, deu um passo atrás.

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Após ler as declarações do autor da obra Amores de Camilo, o escultor Francisco Simões, que garantiu que a figura feminina “não é, nunca quis ser, Ana Plácido” e representa “as mulheres retratadas no romance Amor de Perdição“, a vereadora, que já foi deputada no Parlamento Europeu, disse “já não fazer sentido esta polémica”. “Nem sequer aquilo que eu assinei”, acrescentou ao Jornal de Notícias, dizendo que achava tratar-se de Ana Plácido, o grande amor da vida do escritor.

A “maneira como o homem e a mulher são tratados” foi o que levou Ilda Figueiredo a assinar a petição, tendo sido uma dos 37 signatários, entre nomes como o ex-líder do CDS e conselheiro de Estado, António Lobo Xavier, o antigo deputado comunista Honório Novo e o jurista e ex-banqueiro Artur Santos Silva, que Francisco Simões diz ter “aprovado” a obra, na altura em que foi instalada.

Rui Moreira manda remover estátua de Camilo, após petição apelar ao “ultraje” de estar “abraçado a um exemplar mais ou menos pornográfico”

“Ana Plácido era uma mulher extraordinária que ali é menorizada. Querem pô-la nua, muito bem, não me oponho, desde que Camilo também esteja nu. Ou os dois nus, ou os dois vestidos”, enunciou ao Público.

Ao ler as declarações de Francisco Simões, a vereadora decidiu retirar a sua assinatura e colocá-la numa outra petição, que entretanto foi criada, com o intuito de manter a estátua onde está.

“Pela não remoção de Estátua de Camilo, no Porto” é um abaixo-assinado público que já conta com 3.861 assinaturas, até à data da publicação da notícia.

A petição é destinada “à presidência da Câmara Municipal do Porto, ao senhor ministro da Cultura, ao senhor primeiro-ministro, ao senhor presidente da Assembleia da República, ao senhor Presidente da República” e refere que “o homem estar vestido e a mulher estar nua não tem que parecer”.

“Só agora, ao fim de 11 anos, é que se trata de uma humilhação da mulher desnuda em favor de um homem vestido. Não pareceu na altura, não parece hoje”, escreve o texto da petição.

Desta forma, o abaixo-assinado pede que “seja mantida no local em que está a referida estátua” e que não haja “vontades de começar a remover ou esconder outras, dado que são factos com passado e com história”.

Mesmo com a petição a decorrer, Rui Moreira decidiu contornar a vontade de mais de três mil pessoas. O presidente afirmou esta sexta-feira que vai, por decisão própria, retirar a estátua, por considerar a escultura “feia e de mau gosto”.

É uma decisão minha. Há coisas em que tenho de ouvir os órgãos, há coisas em que tenho de ouvir a população, há coisas em que tenho de decidir quando sei que há posições extremadas dos dois lados. Aqui há quem queira e quem não queira [retirar a estátua do largo], as pessoas que se dirigiram a mim sobre esta matéria são pessoas por quem temos de reconhecer que têm o mérito de se atravessarem por isso”, afirmou o autarca à Lusa.

“Não vamos demolir a estátua, não vamos derreter a estátua. Ela sairá dali e amanhã pode vir outro presidente que queira por lá a estátua outra vez”, referiu, dando como exemplo a estátua do Porto que, disse, irá voltar a ser colocada na Sé.

Aos jornalistas, Rui Moreira esclareceu que a decisão surge na sequência da carta que recebeu, que tem entre os signatários “os dois maiores críticos de arte da cidade do Porto”, referindo-se a Bernardo Pinto de Almeida e Miguel Von Hafe Pérez.

“Essas pessoas refletem um sentimento relativamente aquela estátua que corresponde ao meu. Não é por nenhum puritanismo, não é por ser pornográfico, não entendo isso assim. Temos a menina nua e vamos continuar a ter. Se me perguntar, acho que aquilo, de facto, é feio, é de mau gosto, e esta é, de facto, uma decisão do presidente da câmara”, observou, considerando razoável que a estátua seja retirada.

Questionado sobre a outra petição que, entretanto, surgiu contra a remoção da estátua e que contava hoje, pelas 13:00, com 3.525 subscritores, reforçou que esta é uma decisão sua e que a obra será removida para as reservas municipais.

“Boa ideia foi chamarem aquele largo Amor de Perdição, que não se chamava, isso ninguém vai reverter”, acrescentou.